Por uma vida plena e com a possibilidade de convivência
ROBERTA GONTIJO TEIXEIRA – Tenho pensado bastante sobre os conceitos de caridade e sacrifício. As pessoas, desde que o Rafael, meu cunhado – pessoa com deficiência intelectual e muitas restrições físicas decorrentes de erro médico no parto -, veio morar conosco, me abordam e dizem: que legal o que está fazendo por ele. Quanta caridade de vocês! Deve ser um sacrifício! São as frases que mais escutei nos últimos meses.
Rafa é um menino de 41 anos, com idade mental de 3 a 5 anos. Entende bem tudo que falamos, consegue responder a perguntas básicas e sorri o dia todo, em qualquer circunstância. Perdeu a mãe há pouco mais de um ano, está longe de casa, onde viveu toda a vida com o gêmeo Daniel, seus pais e os outros irmãos. O único momento em que o semblante dele pesa e o sorriso desaparece é quando lembra da mãe. Nessas horas ele chora e me faz todos os tipos de abordagens, desde pedir remédio para aliviar a saudade até perguntar se posso arrumar uma outra mãe para ele. Saiba mais lendo AQUI o texto onde Alexandre Magalhães conta sobre a família.
Não vou apenas romantizar, dizer que tudo são flores e que a vida tem uma logística simples. Não tem. Ele não se troca, não consegue se servir, não toma banho sozinho, não vai ao banheiro sem nossa ajuda e nem se desloca. Então, tudo exige dedicação e tempo. Não dá pra ir a qualquer tipo de lugar, pois precisamos de banheiros próprios e rampas de acesso. A saída é sempre longa e com algum tipo de esforço. Ainda assim, nos últimos meses, nos divertimos muito. Fizemos juntos inúmeras descobertas.
Paulistano que é, foi sempre acostumado a viver na cidade grande. Mesmo quando, alguns anos atrás, antes da pandemia, conseguia frequentar algum tipo de instituição, as relações eram mais restritas. Aqui somos mineiros, interioranos, acolhedores. Queremos dar colo, tocar uns nos outros, entrar em contato com a natureza.
Eu e Alexandre, meu companheiro, adequamos nossa rotina a dele. Conseguimos uma vaga na APAE, onde ele vai três vezes por semana na parte da manhã. Alexandre acorda às 05h30, cuida, arruma, dá café e leva ao ponto do ônibus (que ele ama tomar). Nos primeiros dias, com a passagem do ônibus por vários bairros, chegou relatando que tinha ido a muitas cidades e já conhecia Bom Despacho melhor que o Alexandre. Na volta da “escola”, não há vaga no ônibus e, para a frustração dele, sou eu quem busco. Expliquei a falta da vaga, disse que eu buscaria e ele, com toda a sinceridade: “tudo bem, já que não tem outro jeito, né, não tem vaga”.
Se delicia com a escola. Ama a convivência. Adora o ônibus e as experiências que vive. Conta casos das vivências o resto do dia. Pediu para escrever uma carta para a diretora da APAE e agradecer por ser bem tratado. Ele adora cartinhas. Vive as encomendando.
No natal me pediu para escrever uma cartinha ao papai noel, porque todos já tiveram ou têm uma namorada, menos ele.
A APAE, além de todas as oportunidades (médico, fisioterapeuta, convivência, aprendizado, inclusão e cidadania), trouxe ao Rafa a tão sonhada namorada. Minhas amigas perguntam: Rafa, você está gostando da escola, arrumou muitos amigos? Ele, imediatamente: arrumei uma namorada!
Outro dia, Rose, a moça que me ajuda em casa, nos chamou para ir ao Córrego Areado visitar a sogra dela, nadar na bica, comer comida da roça e conhecer o povoado. Eu e Alexandre colocamos o Rafa e meu pai no carro e fomos.
A acolhida foi incrível! Os papos longos com a família do marido da Rose, o “Guri” lá do VAP, o pé cheio de goiabas e a experiência na bica … indescritível! Sempre acredito que água e contato com a natureza curam. Meu pai, enfrentando batalhas por causa da idade, logo arrumou uma bengala emprestada e deu jeito de se banhar. Numa força tarefa nós, o marido da Rose e seus irmãos, colocamos Rafa na bica. A força do jato era tão grande que ele começava a engolir água e afogar. Nós o tirávamos, meio apavorados e o pedido era imediato: “de novo”.

A Prefeitura promoveu a corrida de Reis. Logo em seguida houve uma festa de confraternização da Correbom. Fizemos nossas inscrições, inclusive a do Rafa. Não acreditam na alegria e aprendizado que foi para todos.
Leozinho, casado com minha querida Aliny, voltando a correr depois de uma lesão de joelho, de posse da cadeira do Rafa, fez todo o trajeto correndo, sorrindo os dois de orelha a orelha. Jonabe, Renata Lago, Vanderleia e outros também ajudaram na tarefa.
A experiência foi tão gratificante para todos que decidimos (o pessoal da Correbom) escrever um projeto “Segue o Rafa” e incluir na próxima corrida, pessoas com todos os tipos de restrições e deficiências (físicas, intelectuais, psíquicas, visuais, auditivas). Vamos todos para rua, praticar esportes, entrar em contato com a natureza, exercitar a inclusão e viver?
Ah, onde ficaram a caridade e o sacríficio? Eles ficaram diluídos no prazer das descobertas, nos banhos d’água, nos aprendizados, nas mudanças, nas adaptações da rotina. Ficaram na alegria de ver alguém experimentar um mundo novo e no desejo de proporcionar essa possibilidade a mais pessoas. Ficaram na dádiva da convivência diária que faz essa vida valer a pena.
Descobri outro dia que a APAE tem praticamente o dobro de pessoas querendo participar da escola do que o número de participantes lá dentro. Não conseguimos vaga na escola, só no centro dia.
Fico pensando onde estamos enfiando nosso tempo e porque gastamos latim lamentando os “sacríficios”, pelejas e lutas alheias ao invés de por a mão na massa e construir novas APAEs, novas formas de inclusão e convivência.
Não é uma luta fácil, é verdade. Fico imaginando para quem não tem carro, quem conta com poucos recursos e que tem um dia a dia muito comprometido e ainda precisa se haver com as restrições de um ser com limitações.
E, toda vez que imagino, penso porque será que temos tanto o hábito de olhar com imensa piedade para situações de luta e tão poucas medidas práticas a facilitar o trajeto próprio e o alheio.
Gostaria de menos olhares piedosos e mais APAEs, mais “Rafas” nas ruas, nas corridas, nos banhos de bicas d’água e com possibilidade de uma vida plena e direito à sagrada convivência.
Obrigada Rafa! Obrigada Correbom! Obrigada APAE! (Portal iBOM / Roberta Gontijo Teixeira é bacharel em Direito, ambientalista e servidora pública federal / Foto: Arquivo pessoal).