Os acordes da madrugada: reflexões do início do dia

 

VANDER ANDRÉ – Os galos começam a cantar cedo por aqui, nas madrugadas frias deste finalzinho de inverno, com temperaturas oscilantes. Os cachorros não ficam para trás, formando um coro como se quisessem avisar aos seus tutores que estão em alerta. Já os cães de rua, apenas latem e se viram como podem. Um tiquinho de sol insiste em colorir o nascente com tons que variam do amarelo ao vermelho, numa paleta quase indecente: uma festa em um céu com poucas nuvens, visto neste horizonte de relevo baixo.

Os trabalhadores que começam sua jornada cedo demais já circulam pela rua Lambari aqui do lado e não se intimidam em dar bom dia uns aos outros, comentar o que viram ou deixaram de ver, além de prever o que virá. Eles também se viram, conscientes de que seu trabalho “temprano” é essencial para muita gente; há urgência em seu labor, e daqui a pouco tem gente reclamando pelo pão de sal quentinho, por exemplo.

Eles também me acordam, como se dissessem: “Vem também”. Com os olhos ainda remelentos, acesso o celular em busca de notícias. De cara, me deparo com a informação de um terremoto em Portugal. Fico apreensivo e cismado; ao que tudo indica, o sismo foi intenso por lá. Brasileiros desavisados relatam que a terra tremeu, e eu tremo de medo. Um misto de preocupação com tudo o que acontece por aqui também: é fogo, é fumaça, é tempestade de poeira, é a chuva que não chega logo. Parece o “fim do caminho”. Dizem que são as mudanças climáticas, consequências das ações danosas do homem, que se torna seu próprio lobo, neste arraial expandido.

Deixo isso de lado, um pouco mais de sono me toma. Encosto a cabeça novamente no travesseiro e tento dormir. Tentativa vã, agora são os carros e as motos que iniciam seu barulho peculiar; há pressa nas ruas, ouvem-se preces nas casas e um padre já inicia a missa na TV da vizinha, que aumenta o som para diminuir sua surdez. Um alarido de crianças a caminho da escola, o sinal da Martinho Fidelis soa um pouquinho antes das sete.

O dia começa cedo em Bom Despacho, e por isso a noite recolhe a maioria das pessoas antes das dez. Agora eu inicio a minha jornada: uma chuveirada para despertar os ânimos, perfumar as orelhas, lavar a alma. O café há de surgir cheiroso, quente, convidativo, e lá vou eu também dar as caras na rua, apreciar vitrines, rever rostos conhecidos, seguir o fluxo, redescobrir a alegria de continuar convivendo. E, sobretudo agora, acompanhar desconfiado a disputa daqueles que, de uma hora para outra, querem transformar a cidade, fazê-la voltar a sorrir, representar-nos, dar-nos vez e voz, endireitar-nos (não sei se isso é possível), colocar-nos nos trilhos (lembro-me de Manoel de Barros, que disse certa vez que “quem anda no trilho é trem de ferro; sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito”). É fundamental tornar-nos parte do processo democrático; enfim, é pagar pra ver o que vem por aí e receber as consequências.

Como não poderia deixar de ser, após tanta reflexão, ouço uma música do Skank, que talvez resuma o turbilhão de ideias que passa pela minha cabeça nesta manhã: “Ô pacato cidadão, te chamei a atenção/ Não foi à toa, não/ C’est fini la utopia, mas a guerra todo dia/ Dia a dia não/ E tracei a vida inteira planos tão incríveis/ Tramo à luz do sol/ Apoiado em poesia e em tecnologia/ Agora à luz do sol./ Pra que tanta TV, tanto tempo pra perder/ Qualquer coisa que se queira saber querer/ Tudo bem, dissipação de vez em quando é bão/ Misturar o brasileiro com alemão…”.   (Portal iBOM / Vander André Araújo é advogado, filósofo, escritor e bancário aposentado / Foto: Vander Araújo).

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *