Sabe nada, inocente! Urnas do Engenho foram arrombadas

 

DILERMANDO CARDOSO – Quando os limites urbanos de Bom Despacho iam da Tabatinga ao Quenta Sol e do Batalhão até à Ponte Criminosa… Quando o lixo da cidade era recolhido pelo Saquinho, num carroção puxado pela besta Ventania — que geniosa empacava em cada esquina e não tinha reza nem chicote que resolvesse… Quando, após quinze anos, foi derrubada a Ditadura Vargas e, democraticamente, o povo pôde votar…

Então, dois partidos cativavam os corações e mentes dos eleitores bom-despachenses: PSD e UDN. Com Dr. Hugo em 1946 e Dr. Cisalpino em 1950 a UDN elegeu dois prefeitos seguidos. Desesperado, por causa das derrotas, o pessoal do PSD batia cabeça, quando alguém lá descobriu o caminho para as Índias: por que não lançar um candidato com “Dr.” antes do nome? Embora as campanhas anteriores tenham sido brigas de cachorros grandes, prometeu-se vir com tudo e mais alguma coisa no próximo pleito…

E Bom Despacho viveu dias agitadíssimos, como se a final da Copa do Mundo de Futebol fosse Brasil contra Argentina coincidindo com o Carnaval. Comícios, passeatas, foguetórios, arruaças entre adversários furiosos e apaixonados faziam nossa pacata cidade fervilhar qual uma grande metrópole! Eram as eleições municipais de 1954…

Se, mais uma vez, o candidato da UDN exibia um chamativo “Dr.” — Dr. Nicolau —! Também, agora, o concorrente da PSD ostentava o seu — Dr. Francisco —! Finda a votação, iniciou-se a apuração: como na reprise de um filme antigo o candidato udenista saiu na frente. O “tri” era coisa mais certa do que se ouvir o trovão depois do relâmpago. E ainda faltavam ser apurados os votos do Engenho do Ribeiro: tradicional reduto da situação. Tava no papo!

Foi aí que, sorrateiramente, a turma do PSD pôs em prática seu plano B — aproveitando a euforia do pessoal da UDN, combinou-se que o restante da apuração ficaria para o dia seguinte! E cada partido escalou meia-dúzia de fiscais para vigiar as urnas durante a noite. Já virada a madrugada, amigáveis, os fiscais do PSD resolveram brindar a vitória dos concorrentes oferecendo-lhes um cafezinho para espantar o sono…

Nem preciso dizer que o tal café estava “batizado”. Além do açúcar tradicional adicionaram tanto sonífero à bebida, que faria dormir um elefante! Bastaram alguns minutinhos e os fiscais udenistas roncavam pelos cantos do Clube Social, onde se fazia a apuração; enquanto, ligeiros como gatos, os rivais pessedistas (que, é claro, beberam café de outra cafeteira) tratavam de arrombar as urnas do Engenho e fazer a troca dos votos. Naquela época, as urnas eram caixotes de madeira, fechados a pregos, mas com uma fenda na tampa por onde os eleitores depositavam as cédulas de papel, devidamente guardadas num envelope… E pronto, estava consumado o inalienável direito do voto — livre e secreto!

Manhã de sol, final da apuração, surpresa geral! O “Dr.” do PSD virou a contagem dos votos e venceu a eleição! Mas como não existe crime perfeito, no corre-corre da troca de cédulas, antes que os adversários acordassem, além de mudar todos os votos para o candidato pessedista a prefeito, os arrombadores das urnas do Engenho do Ribeiro também “elegeram” dois vereadores do mesmo partido — justamente os que durante a campanha não haviam sequer botado os pés no Distrito! Como não poderia deixar de ser os udenistas espernearam, xingaram, brigaram e o caso acabou na Justiça. Todavia, como abaixo da Linha do Equador tudo é possível, dito processo deu em nada e foi arquivado! O povo, porém, que nunca foi bobo e nem esquecido, cuidaria de aplicar uma pena exemplar aos larápios de votos. Na eleição seguinte, mesmo sem um “Dr.” antes do nome, o candidato da UDN — Antônio Leite — aplicou uma lavada histórica, com 1.503 votos de frente, no candidato do PSD!

Qualquer dia destes, em que batia pernas pela praça da Matriz, ao passar por certa rodinha de aposentados e reformados que jogavam conversa fora à porta da Lotérica Central, percebi que um deles, exaltado e dando banhos de perdigotos nos companheiros, punha em dúvida a segurança das urnas eletrônicas. Para não arrumar briga, porque não sou destas coisas, apenas pensei comigo: — Sabe nada, inocente!  (Portal iBOM / Dilermando Cardoso é bancário aposentado e escritor / Imagem ilustrativa).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *