Lendas e raízes de Bom Despacho: a Pedra do Raio
LÚCIO EMÍLIO JÚNIOR – Outro dia, conversando com meu tio Bil Morais (Mário Lúcio Morais) retornamos ao tema de seu trabalho de conclusão de curso em História. Sua pesquisa confirma a de Orlando Ferreira de Freitas em Raízes de Bom Despacho (Belo Horizonte: Edição do Autor: 2005): essa cidade é a terra dos descendentes do Padre Belchior Pinheiro, um verdadeiro patriarca da independência. Orlando registrou que até mesmo a égua presente no dia do grito da independência veio, posteriormente, a Bom Despacho. Era o mesmo animal que o Padre Belchior utilizou na viagem até São Paulo por ocasião do grito da Independência. Ela foi trazida já idosa e veio a falecer na fazenda Piraquara. O posto Piraquara faz, a essa antiga fazenda aqui existente, uma justa homenagem. Piraquara, em tupi guarani, significa “morador da margem dos rios”.
Bil Morais sabe histórias fantásticas sobre a cidade, bem como conhece muito bem Grande Sertão Veredas, de João Guimarães Rosa. Bil (e outras pessoas, como Dona Sebastiana do Moçambique, já falecida) contaram-me que nem sempre a festa do Reinado era o que é hoje. Em um tempo nem tão distante, era uma festa afro-brasileira, mística. Não era ainda a festa da cidade. Pelo contrário, a Igreja local não permitia a entrada dos festeiros dentro de seus espaços; os católicos davam os braços em torno dos templos resguardando seus locais sagrados. A festa tinha outros aspectos mais mágicos, propriamente ditos. Quando uma “magia” agia sobre um corte, o de Dunga, por exemplo, tinha isso, não se sabe bem como detectavam, ele ficava ali girando no mesmo lugar até ocorrer um “desencanto”.
Nas minhas memórias infantis e de adolescente, a cidade fundia-se com o povoado de Macondo de Gabriel Garcia Márquez. Um dia, brincávamos na rua (a TV passava o desenho francês Três Mosqueteiros, que nos inspirava) com vassouras à moda de cavalos e, do nada, surgiu um homem bem mais velho e, já trazendo sua própria vassoura, juntou-se ao nosso brancaleônico exército. De início, mostramos perplexidade, mas o mosqueteiro cadete aderiu tão convicto às nossas fantasias que sentimos confiança. Vovó Irene viu a cena, travou uma conversa amigável junto ao “cavaleiro” e, depois, comentou-a espantada junto aos adultos. Se não fosse a narrativa de Dona Irene, eu imaginaria, até hoje, que aquele episódio tinha saído da minha imaginação e não da realidade!
Nossa família comentou muito o livro Cem Anos de Solidão desse escritor. Lembranças da família e da cidade fundiam-se com a narrativa. No passado, o gelo (e seus derivados, como o sorvete) eram um luxo em Bom Despacho, e, assim como na narrativa, quase ninguém tinha geladeira. Até hoje, as descrições da chegada do gelo, misturado com serragem, presentes no romance colombiano, são tão vívidas em minha mente que não sei distinguir o que foi contado pela família e o que estava no romance.
O livro de Orlando não apresentou a história dos quilombolas locais (que nos legaram a Língua do Negro da Costa) e deixou de lado os povos originários, sem dúvida existentes. Comprovando a influência desses últimos, meu pai tem uma lembrança em comum com Orlando, uma lembrança que os antigos recuperam: encontravam-se aqui, pelos campos, pedras trabalhadas artesanalmente. Eram chamadas pedras do raio, pois as pessoas imaginavam que as pedras tinham sido atingidas por um raio e ficado daquela forma, forma de uma gota. As pedras eram polidas, as pessoas locais usavam para decoração. Na verdade, eram artesanato de povos originários. Na infância de meu pai, estas pedras ainda existiam pela região rural da cidade. Elas se devem, portanto, à tradição dos nativos Cataguás, tribo que habitava na cidade de Bom Despacho. Igualmente, foi encontrada aqui na região uma urna funerária de tradição Aratu-Sapucaí (igaçaba). Há registros dessa tradição Aratu no Brasil desde o século IX depois de Cristo. A memória dos nativos sobrevive, na festa do Reinado local, na figura dos penachos.
Curioso também é que, no livro de Orlando, ele elenca a lenda número 15: “o padre Belchior de Oliveira teria tido um romance com Elise Delaunay d´Angers, viúva de um oficial de Napoleão Bonaparte, resultando na concepção de Júlia, a Francesa”. Júlia, a francesa, era cunhada do Major da Piraquara, José Antônio da Silva Cardoso. José D’Avó Gontijo, neto do Major, teve sua obra poética lançada em 2003 pelo então SESC local (eu estive no lançamento e tenho o livro). Vovó Irene era neta desse poeta e sua lenda e poemas sempre foram preservados com orgulho pela família.
Bom Despacho, em seus 112 anos, continua sempre surpreendendo-me com suas lendas e magias! (Portal iBOM / Lúcio Emílio Júnior é filósofo, professor e escritor / Foto do alto: da esquerda para a direita estão Mário Morais, Irene, Hermengarda – filha do poeta José d´Avó Gontijo e neta do Major da Piraquara – e Sônia / Arquivo da família).