Bom Despacho, a ti nosso amor!

 

Bom Despacho/MG e suas ruas ensolaradas, seus inúmeros botecos, seus moradores sem pressa, continuam

CELESTE MORAIS – Quem viu crescer uma criança recém-nascida até os dois anos de idade percebe e se emociona com o enorme progresso, a conquista da linguagem e do caminhar. Quem vê crescer um animalzinho de estimação ou uma simples planta se extasia com a mudança. E quem vê crescer uma cidade?

Conheci Bom Despacho menina, com suas ruas poeirentas, iluminação precária, casario baixo, habitantes que se conheciam e se visitavam amiúde. As crianças brincavam soltas. O sino da matriz era uma entidade à parte, conectando os moradores nos momentos de tristeza e/ou alegria; a hora do Ângelus parecia criar um hiato de reflexão no tempo.

Minhas irmãs Jane e Denise numa coroação

Em maio, as coroações na Igreja Matriz mobilizavam os anjos e demarcavam sutilmente as classes sociais. As filhas das festeiras ou os anjos mais bem vestidos “subiam” os degraus do altar, coroavam a Virgem ou lhe depositavam nas mãos a “palma” que geralmente era uma rosa.

Os alunos menores saíam do Praxedes; os maiores do Colégio Estadual, que depois veio a ser Miguel Gontijo. As meias brancas dos alunos em geral eram amareladas pela poeira fina; e na época da chuva o barro se colava aos sapatos. Em maio e final de agosto os tambores ribombavam nos ensaios para os festejos de primeiro de junho e sete de setembro. Seu Roldão ensaiava as turmas com camaradagem e simpatia.

Foi após um desses ensaios que, ao entrar na sala de aula, percebi uma certa tensão no ar. Os rapazes, já sentados, em silêncio, recebiam uma descompostura que o professor Majela lhes passava por um erro ortográfico em uma redação. No quadro verde que a gente chamava quadro negro, uma frase mal-ajambrada se destacava. Eu, miúda e míope (ainda não diagnosticada), entrei na classe em um desditoso momento. A confusão era por “mal” trocado por um “mau” na escorregadela fatal! O professor me recebeu como a salvadora; eu iria dar uma lição na cambada. Qual o quê! Olhei para o quadro sem mal enxergar as letras e disse embaraçada que não sabia onde estava o erro. Deus nos acuda! Guimarães Rosa diria que foi um “mexinflol” dos infernos. Eu aprendi, naquele momento, não apenas a diferença entre substantivo e adjetivo – mas que, tal como nas aulas de iniciação musical administradas pelo próprio professor Majela – a binariedade da vida é mais lancinante do que os compassos musicais! Ora você vai às grimpas, ora desce ao subsolo.

No primeiro mandato do prefeito Antônio Leite (1959-63) a cidade parecia passar de menina à moça. As ruas agora ostentavam paralelepípedos, a água passou a ser tratada, as redes de esgoto substituíam os buracos fétidos. Enfim, o marasmo anterior dava lugar a uma buliçosa alegria que o movimento estudantil reverberava. Quando os estudantes se deslocaram para protestar contra o aumento dos ingressos do Cine Regina, o professor Majela estava à frente.

Na década de setenta o Roda Viva seguia a pleno vapor, apesar do manto com que a Ditadura teimava em recobrir as vozes e os talentos na música e no teatro. Longe de Bom Despacho, com os filhos pequenos e trabalhando no Magistério, não senti “in loco” as mudanças nas décadas seguintes. Retornei no começo dos anos 2000. Bom Despacho se verticalizara bastante, a cidade se agitava.

Minha irmã Beth não estava mais entre nós. A menina à frente de seu tempo, questionadora e destemida que subia nos muros e nas árvores, que pisava na cinza quente e se dependurava nos armários provocando pequenas tragédias não estava mais aqui. Na saudade ficou o quarto que dividíamos, cheio de flâmulas e pôsteres de Roberto Carlos, Ronnie Von e dos Beatles. Ficou o seu diário de viagens, o caderninho das músicas preferidas, com as letras de seus queridos Ivan Lins, Flávio Venturini, Caetano Veloso…

Do leite e do pão entregue à porta das casas, das horas dançantes e questionários indiscretos, das vacas de tapa de que, de quando em vez botavam em correria a meninada, surgiram pequenas indústrias que se transformaram em médias e grandes empresas. A Fábrica de Tecidos, pioneira e maior fonte de empregos durante décadas, conheceu o ostracismo. O Clube Social, tão dinâmico e agregador, perdeu a razão de ser. Uma dinâmica a cada dia mais inovadora nos conectou à Internet e deixa nossas crianças mais e mais presas ao celular. Só os mais antigos se lembram dos jogos de finca, bola de gude ou das brincadeiras de roubar bandeira. Sem saudosismo!

Bom Despacho e suas ruas ensolaradas, seus inúmeros botecos, seus moradores sem pressa, continuam. Muita gente de fora chega, acolhida com carinho, e pega carona na nossa prosperidade. Ainda paramos ao encontrar os amigos e trocamos um dedinho de prosa. Resistimos. Somos felizes na nossa medida, superamos um obstáculo aqui, outro ali. Sorvemos a nossa alegria pequena com avareza, deixando sempre um pouquinho para depois. E ainda cantarolamos baixinho o hino de autoria do professor Majela, que exalta essa terra com o refrão: Bom Despacho, feliz é teu dia! Bom Despacho, a ti nosso amor! (Portal iBOM / Maria Celeste de Morais é professora aposentada e escritora / Foto do alto: da esquerda para a direita estão Lúcio Emílio Júnior, Roberto de Melo Queiroz Neto, Mário Marcos, Joesse Queiroz e Vinícius de Morais, o hoje músico Vinikov. Praça da Matriz de Bom Despacho/MG, início dos anos 80).

 

 

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