George: réquiem para um amigo
DILERMANDO CARDOSO – Faz nove anos, George veio morar conosco trazido por meu filho caçula numa sacola de supermercado. Então, do alto da minha ignorância, protestei: “De jeito nenhum! Onde já se viu cachorro em apartamento?” Felizmente, fui voto vencido. Bastaram uns poucos dias, para aquela criaturinha peralta mostrar o quanto eu era preconceituoso em relação aos cães. Como não haveria de me encantar, quando ele arrastava sapatos para debaixo das camas? Desobediente, roia os pés das cadeiras e sofás? Por capricho desfiava tapetes com as unhas? Ou, ainda, quando ao soar a campainha da porta tinha que ser ele o recepcionista, para aos saltinhos, abanando a cauda e latindo amigável saudar os visitantes a fim de que se sentissem bem-vindos?
Não sou exatamente uma pessoa mística. Todavia, é inegável que existam números cabalísticos influenciando os destinos… Há precisos quarenta dias, o George amanheceu doente — e foi este o tempo da sua agonia. Tal como quarenta foram os anos em que os judeus vagaram pelo deserto; a quaresma pede quarenta dias de recolhimento; durante quarenta dias e quarenta noites, em sua arca, navegou Noé pelas águas do dilúvio; e, para que estas linhas não exalem apenas cheiro de sacristia, quarenta ladrões acompanharam Ali Babá nas suas arruaças mundo afora…
Ontem, às lágrimas, nos despedimos do nosso estimado Shih-tzu. Falência dos órgãos: já não se alimentava direito; nem se locomovia sozinho; e respirar, para ele, representava um suplício porquanto prolongasse seu estado terminal. Morto, parecia dormir o sereno sono dos justos. Assim será lembrado por tudo de bom que nos proporcionou em vida. Para satisfação deste velho arrogante, desfrutei de sua companhia e fui o maior beneficiário dos seus ensinamentos. Ah, sim, porque “eles” são mais sábios do que nós humanos, em não poucas coisas e ocasiões…
E quão contagiante era sua alegria ao sairmos para fazer caminhadas pelas ruas da cidade: de manhã e à tardinha! Havia que ser ele à frente. Na verdade, o danadinho me conduzia conquanto eu lhe segurasse pela coleira; posto que, com o ímpeto natural dos mais jovens, George achava que tinha sempre a preferência quando atravessávamos vias públicas: e isto, em Bom Despacho, é algo bastante arriscado!
Portanto, quase desnecessário seria dizer, além de meu escudeiro, amigo fiel, ele foi ouvinte das minhas alegrias e tristezas. Nunca reclamou por eu fazer-lhe os ouvidos como depósito de muitos pecados e poucas virtudes. Escutava-me paciente e atento, decerto compartilhando dos meus sonhos e pesadelos: sem um uivo de recriminação. Nos seus olhos eu pude ler mensagens que me propiciaram reavaliar o modo de ver e viver a vida. Que ninguém se engane: todo animal possui alma, sentidos e instintos como nós; que não nos falte sabedoria e humildade para entender e praticar as lições ensinadas, gratuitamente, por eles.
É provável que, a esta altura da crônica, algum leitor tresnoitado se pergunte: “De onde alguém tirou nome tão esquisito, George?” Décadas atrás, certa banda de rock, The Beatles, fazia sucesso no mundo todo. Fã deles, meu filho decidiu batizar o Shih Tzu com o nome de um dos seus integrantes, George: carismático guitarrista e compositor. Encerro estas recordações cantarolando uma canção de sua autoria: “My sweet Lord” — Meu bom Senhor —, que diz: “Oh, Senhor… Meu bom Senhor…
Realmente quero conhecê-Lo… Isto não vai levar muito tempo…” Portanto, se existe um Senhor, creio que ambos os Georges desfrutem agora da sua companhia. Ao chegar minha vez, caso mereça, espero encontrá-los por lá! (Portal iBOM / Dilermando Cardoso é bancário aposentado e escritor / Foto do alto: Denis Pereira).
Como bem disse Santo Agostinho: “a morte não é nada, o George só passou para o outro lado do caminho”.