Roniere Menezes: nosso embaixador no Mundo

 

LÚCIO EMÍLIO JÚNIOR – O meu amigo Roniere Menezes fez doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (2008). Eu o conheço desde que ele fazia a dupla com “Ronie e Renner” no bar Gharife aqui na cidade. E escrevia sobre poesia e a banda Titãs na imprensa local… Sim, leitores, “eu nasci há dez mil anos atrás”.

A premiada tese de Roniere, O Traço, a Letra e a Bossa: Arte e Diplomacia em Cabral, Rosa e Vinicius, trouxe uma referência afetiva maravilhosa a respeito de Bom Despacho logo em seu início. Vale a pena conhecer. Segue o texto abaixo, intitulado Descoberta do Sertão:

“Estava com dez anos quando meu pai fechou sua loja de artigos de confecção e brinquedos na praça da matriz de nossa pequena cidade e foi trabalhar, por alguns meses, como representante de produtos veterinários. Em seu trabalho, percorria sítios e fazendas do Centro-Oeste de Minas: Abaeté, Bom Despacho, Biquinhas, Dores do Indaiá, Quartel Geral, Maravilhas, Martinho Campos, Paineiras, Papagaios, Pequi, Pompeu e outros municípios. Levou-me com ele algumas vezes, em minhas férias ou folgas escolares. De jipe, pela estrada de terra, ia conhecendo o sertão. Quando chovia, o cheiro da terra e do mato invadia o automóvel e misturava-se ao cheiro das dezenas de caixas de remédio, ao óleo e à fumaça.

Entre estradas esburacadas, feitas de lama e poeira, conheci antigos casarões casebres espremidos; vi homens trabalhando no roçado e no curral; ouvi estórias e anedotas sertanejas; estive em um barracão onde uma família inteira – pais, jovens e crianças – trabalhava fazendo polvilho para o patrão; em uma casa perdida na distância exata do nada, encontrei um senhor que vendia vestidos, camisas, utensílios de cozinha, terços e outros objetos. O rio São Francisco servia-nos como referência. Vi um dia dois homens atravessarem um de seus afluentes, montados em cavalos que nadavam no perigo das águas. Precisavam ir à casa de um fazendeiro, do outro lado do rio. Avistava-se a moradia, na outra margem, isolada. Ideias a respeito do perto e do distante embaralhavam-se no desenho da paisagem. Devagar, eu criava minha coleção de imagens sertanejas.

O sertão apresentava-se a mim enquanto eu ajudava meu pai a descarregar os pedidos de caixas de remédios veterinários da Farmagro. O produto da indústria química aliava-se à natureza. Ao sertão bucólico vinham somar-se ingredientes da vida urbana, que contribuíam para a diluição de fronteiras entre espaços.

Em Morada Nova, conheci a represa Três Marias. Estive na casa de uma família que teve de se mudar devido à inundação de suas terras. Do outro lado do lago estava a cidade de Três Marias, aonde se chegava de balsa. Meu pai me contou que a represa havia sido construída quando JK era governador de Minas. Disse também que daquela região saíra, muitos anos antes, uma comitiva, levando boiada para terras distantes (da comitiva participou um escritor, anotando em cadernetas todas as impressões da travessia).

Em uma dessas viagens, meu pai trouxe à nossa casa um de seus guias, seo Carmo. Precisava ir ao médico. Tinha doença de chagas. Estava com mais de 60 anos e quase não conhecia a vida na cidade. Homem alto, moreno, alegre e acanhado. Enquanto tomava café, a empregada passava enceradeira na copa. Ele se espantou com o movimento e o barulho do eletrodoméstico. Pouco depois, minha mãe ligou a televisão, aparelho já bastante difundido, mas desconhecido daquele homem. Os olhos abriram-se com estranhamento a um mundo novo, num misto de receio e curiosidade. Nas conversas, durante o jantar, ficava observando seo Carmo. Alguma coisa soava estranha, não se inteirava… No seu incômodo com elementos que eu considerava tão corriqueiros, aquele senhor plantou em mim uma fagulha de curiosidade sobre o Brasil que surgia do confronto entre o velho e o novo.

Com este trabalho, pretendo de certa forma resgatar fragmentos da percepção do matuto senhor que visitou minha infância. Na minha frente estava uma vida cheia de experiências, sabedorias, técnicas e criações ligadas à tradição. A modernização ladeava margens irredutíveis às suas ordens. Como conciliar toda aquela formação cultural oralizada com a chegada de novos aparatos tecnológicos? Conheci, através das viagens e do contato com o hóspede, um sertão cujos diálogos entre a tradição e a modernidade certamente ativaram a reflexão social e a escritura artístico-literária dos três escritores viajantes aqui estudados. Entender melhor o modo como se dá, em Rosa, Cabral e Vinicius, esse encontro entre sertão e modernidade é um dos objetivos centrais deste trabalho” (Roniere Menezes in Descoberta do Sertão).

(Portal iBOM / Lúcio Emílio Júnior é filósofo, professor e escritor / Foto: Arquivo).

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