“O Milionário da Loteca” de Bom Despacho
VANDER ANDRÉ – Bom Despacho encerrou o ano de 2023 e começou 2024 com uma notícia surpreendente: faltavam poucas horas para o novo ano quando o ator global André Marques, sumido da TV, numa transmissão ao vivo, anunciou que um dos cinco ganhadores da Mega da Virada 2023 era, para nossa surpresa, de Bom Despacho (MG).
A partir desse momento, as redes sociais e os aplicativos de comunicação instantânea na cidade foram inundados por especulações, tentando descobrir quem era o feliz ganhador. Houve sugestões de tudo, de bolão de empresa até um jovem sorridente cuja felicidade não passou despercebida em uma foto que circulou naquela madrugada.
O valor do prêmio foi sacado no dia 3/1, conforme informações da Caixa Federal disponíveis no site UOL, mas ainda não conhecemos a identidade do sortudo. Vale ressaltar que o(a) ganhador(a) teria 90 dias para se apresentar em uma agência da Caixa, sob pena de perder o prêmio caso assim não o fizesse.
O jornal Estado de Minas publicou uma reportagem, em parte delirante, considerando a possibilidade de o ganhador investir os mais de 117 milhões de reais (segundo o jornal, mais de um terço do orçamento anual da Prefeitura) em benefício da comunidade. Agindo como uma espécie de “Robin Hood do cerrado”, o felizardo poderia promover uma verdadeira “mudança na realidade local”.
Para justificar os seus argumentos, o repórter e sua estagiária apresentaram parecer do secretário de administração municipal, que comentou que o “valor poderia levantar UBS, aumentar a segurança e melhorar a qualidade de vida da população”. Já o prefeito, de maneira mais realista, comemorou e expressou a esperança de que “o valor venha a ser aplicado e gerar emprego e renda no município”.
Superados os devaneios, retornamos à nossa condição humana de apostadores e sonhadores de mudança de status social. Quantos de nós fazem planos incessantes para quando ganharmos sozinhos na loteria, nos jogos de “azar”, nas rifas, nas megas da vida? As apostas são variadas, os desejos insaciáveis e nem sempre o dinheiro resolverá todos os nossos problemas. Sempre há algo que nos vai faltar.
O dinheiro, portanto, nem sempre é garantia de felicidade. Silvio Santos excitava sua plateia feminina perguntando quem queria dinheiro, lançando questões esdrúxulas para respostas “ao vivo”, muitas vezes gerando constrangimentos em função da ignorância alheia. Lançava aviõezinhos de cédulas de reais, amassadas e dobradas, sem valorização do que realmente aquilo representava para a Nação, a uma turma de insaciáveis capitalistas de plantão, deixando-nos em casa com a sensação de inveja.
O Jogo do Milhão ainda faz sucesso e tem audiência de outros milhões que torcem para que o gênio escolhido para responder as perguntas no palco acerte a resposta numa daquelas múltiplas escolhas que vão se dificultando à medida em que se aproxima o grande prêmio e as ajudas, incluindo dos “universitários” se acabam. E, para variar, pois “estamos em guerra”, assistiremos (ou não) a partir do dia 8, à nova edição do BBB, o reality que promete um prêmio mais que milionário para quem subsistir ao confinamento, superando as provas de “resistência” e, o que é mais difícil, as vicissitudes demasiado humanas dos demais candidatos.
Bancos e a Caixa também são apontados como promotores de mais e mais loterias, vendendo planos de capitalização com argumentos de realização de sonhos. Entretanto, algumas pessoas, por questões religiosas, veem esses jogos como prejudiciais à fé e à moralidade, o que deve ser respeitado.
Afinal, o que o (a) grande ganhador (a) dessa nossa história poderá fazer com o vultoso recurso disponível? A imprensa já afirma que, só por não ter se apresentado nos 2 dias úteis subsequentes, ele ou ela “deixou de ganhar” mais de 50 mil reais, por dia, no mercado financeiro, se já tivesse investido a grana, numa especulação desenfreada.
Pelo visto, dinheiro não vai faltar para que o (a) felizardo (a) realize seus sonhos daqui para frente. Tomara que ele ou ela tenha lucidez para investir o capital de forma adequada e bem pensada, evitando os consultores e aproveitadores de plantão.
Todo esse rebuliço na cidade e região me fez recordar de uma participação modesta que tive em uma peça teatral, escrita e dirigida pela saudosa professora de Língua Portuguesa, Dona Lourdes Resende, e apresentada no palco do “Teatro” do Colégio Miguel Gontijo: “O Milionário da Loteca”, no final dos anos 1980.
No espetáculo, o ganhador decide, com o dinheiro obtido, dar uma volta ao mundo e vários personagens surgem representando as realidades locais de cada país, as culturas, os valores, as tradições na dança, nas artes, na gastronomia e assim por diante, para que ele escolha qual seria o seu “melhor destino”.
Na ocasião, interpretei o papel de um pequeno chinês e repetia a canção: “lá vem o seu China na ponta do pé, ligliligliliglilé… Chinês come somente uma vez por mês, não vá lá em Xangai, buscar a betterfly, aqui em pouco tempo fez a sua fé…”
Após acompanhar toda a apresentação de vários países europeus e outros mais tentadores, o personagem principal descobre que deveria empreender, na verdade, aquela viagem que Drummond tanto mencionou na sua poesia: “Ao acabarem todos / Só resta ao homem / (estará equipado?) / A dificílima dangerosíssima viagem / De si a si mesmo: / Pôr o pé no chão / Do seu coração / Experimentar / Colonizar / Civilizar / Humanizar / O homem / Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas / A perene, insuspeitada alegria / De con-viver.”
Estou na torcida para que o nosso milionário bom-despachense saiba se identificar como ser humano, repleto de valores virtuosos, neste mundo de oportunidades limitadas para todos, ao lado de tantas pessoas, no meio de tanta riqueza e, ao mesmo tempo, tanta carência ao seu redor. (Portal iBOM / Vander André Araújo é advogado, filósofo e escritor / Foto do alto: imagem ilustrativa).
Mais uma vez, nosso sensível articulista nos convida a refletir sobre o exercício de uma competência geral da Base Nacional Comum Curricular: “Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza”, que se traduz em gestos altruístas e acima de tudo de um exercício humanizadir! Bravo pela coragem e perseverança em dias melhores para todas e todos. Chegaremos lá!