Zuca, o bom-despachense que tem Drummond no jardim
VANDER ANDRÉ – Zuca Lobato, segundo ele próprio, completará 80 anos em janeiro de 2024, considerando os 9 meses que passou na barriga da sua mãe. Ele se recusa a se considerar velho, seguindo a sábia frase do seu avô, que disse: “Ponha na sua cabeça, rapaz, velhos são aqueles que têm 20 anos a mais que a gente; portanto, pensando assim, a gente nunca fica velho”.
Natural de Bom Despacho, Zuca viveu uma infância itinerante, pois mudava frequentemente de casas, como um cigano. Após residir na rua do Rosário, a família fixou moradia na Rua Dr. José Gonçalves, quando seu pai comprou a casa do Geraldo do Tõe. Até hoje, Zuca mora na Avenida São Vicente, onde ele namorou, casou e vive naquela casa em frente à escadaria da Praça da Estação, onde cuida com enorme zelo de um quintal.
Em um gesto marcante, quando a Praça da Estação completou 60 anos, Zuca, então secretário de meio ambiente da Prefeitura de Bom Despacho, decidiu mobilizar a população para plantar 22 palmeiras imperiais no local. Cada uma delas recebeu uma placa indicativa com o nome do prefeito Célio Luquini, e outras informações sobre as autoridades da época, além do nome de quem as plantou. Contudo, ao celebrar 90 anos da Praça em 2022, Zuca percebeu, sem nenhuma comemoração oficial, que as 22 permanecem vivas, mas apenas 6 delas ainda possuem as placas indicativas.
Após essa iniciativa, ele convidou as pessoas a plantarem mais 2.000 árvores pela cidade e dessas devem ter prosperado umas 1.000. Somente na Avenida Doutor Juca foram 400. Demonstrando persistência, ele comentava: “planto outra vez, se arrancarem”. Seu comportamento de arborizar a cidade remonta à infância escolar. Durante seu tempo no ginásio, a Dona Isa, esposa do Doutor Juca, conduziu um teste vocacional nos estudantes e, para tanto, contratou psicólogos de São João del Rei para avaliá-los.
Rugas precoces
Os especialistas ficaram intrigados com os primeiros sinais de rugas precoces nos alunos e procuraram as causas. Ficaram surpresos ao descobrir que Bom Despacho era uma cidade “plantada” em cima de 3 morros, exposta constantemente ao sol. Como resultado, as crianças sob incidência da luz e calor intensos viviam com os olhos semicerrados, resultando nas previsíveis rugas precoces e pés-de-galinha… A cidade carecia, portanto, de árvores e sombras, levando-o a dedicar sua vida como ambientalista a promover ações de plantio e abraço verde, inclusive nas escolas.
O apelido Zuca
O nome Zuca, que ele usa desde criança, tem origem curiosa. Perguntado acerca disso, diz que nem a sua mãe sabe. E desde que se entende por gente, já era chamado assim: “Eu me sinto mais Zuca do que Aelson, me identifico melhor assim. Minha esposa, Maria Angélica, desde o primeiro beijo, me chama por esse nome”.
Quando decidiu concorrer ao cargo de vereador, ciente de uma lei que proibia votos em candidatos que utilizassem apelidos, tomou a iniciativa de regularizar a situação, ingressando com um pedido de retificação civil do seu nome. Recorda-se de um episódio, em que, na mesma circunstância, Cafunga e Tostão quase perderam a eleição em Belo Horizonte por esse motivo. Assim, como advogado, ele mesmo deu entrada no processo de retificação do seu nome.
O juiz à época, Doutor Alaor, juntamente com a promotora Vanilda Cardozo e Doutor Orlando, interpretaram o pedido como mais uma brincadeira política de Zuca. A promotora, com certo desdém, afirmou que revisaria com calma e tentaria agilizar o processo. Zuca anexou à petição um bilhete que a própria promotora havia lhe enviado, solicitando que ele atendesse gratuitamente, como advogado, a um cliente da ABAP, chamando-o de “Zuca”. Sem mais delongas, ela despachou imediatamente o seu pedido ao ver o anexo, o que lhe possibilitou se candidatar com o seu nome-apelido.
Zuca é um prolífico escritor, apesar de não ter ainda nenhum livro publicado. Ao longo dos últimos vinte e cinco anos adotou o hábito de registrar diariamente, a mão, um resumo do que fez durante os dias. Seu filho Pablo frequentemente o aconselha a organizar seus escritos, poemas e desenhos feitos de forma primorosa com a técnica de utilizar apenas as canetas BIC. Ele se recorda de que o filho pegou um caderno seu, escrito quando ele tinha 18 anos, carregado de lirismo. Além de escrever e desenhar, Zuca é um ávido leitor. Quando sua esposa Maria Angélica entra na sala, durante nossa conversa, ela interrompe para destacar que ele consome diariamente uma dose considerável de leitura, seja de Otto Lara Resende, Drummond, Manuel Bandeira…
Zuca aprecia notadamente o trabalho do gaúcho Álvaro Moreyra, uma influência significativa no modernismo, que deixou sua marca na poesia de Drummond. Ele menciona o seu livro “Havia uma oliveira no jardim”, cujas páginas do exemplar estão repletas dos seus comentários e que agora, encontram-se soltas de tanto manuseio. Álvaro, para Zuca, representa um desvio das posições tradicionais modernistas, enriquecido com humor, num estilo que lhe agrada mais, trilhando um caminho carregado de sensibilidade.
Cada neto uma árvore
É interessante observar aqui que o jardim, ou melhor, o quintal de Zuca, é um local especial para ele e sua família. Cada nascimento de um neto ou neta é marcado pelo plantio de uma árvore ali, como jabuticabeira, abiu, abacate, dentre outras, tornando o quintal um espaço carregado de significado, como no título da obra de Álvaro.
No dia da entrevista, por coincidência, Zuca havia acabado de ler uma crônica de Otto Lara Resende, de 25.11.1991, “Ser Mineiro” e ele nos contou: “Conhecido por sua perspicácia crítica, ele aborda, nesta crônica, a figura de Silvio Vasconcelos e a influência urbana decorrente da busca pelo ouro, o que exigiu a astúcia dos mineiros. Otto esclarece que, nesse contexto, astúcia mineira não implica em má índole, mas sim em paciência”.
No ano em que a esposa de Zuca engravidou pela segunda vez, ocorreu a coincidência triste do falecimento de três renomados artistas Pablo: o poeta chileno Neruda (que se chamava Ricardo Eliécer), o artista plástico espanhol Picasso e o violoncelista catalão, Casals. Diante dessa conjuntura, fez um acordo com ela para que, se fosse menino, se chamaria Carlos em homenagem a Drummond e Pablo, em homenagem aos três artistas mencionados. Ele esclarece: “Não era porque eu aspirasse que o meu filho trilhasse o caminho da arte, mas para minha surpresa e alegria, isso acabou acontecendo, e hoje, Carlos Pablo é um reconhecido artista visual e diretor de cinema”.
Cartas de Drummond
Um fato intrigante na vida de Zuca é a sua relação com o poeta, contista e cronista mineiro Drummond. Ele explica: “Tive uma correspondência esporádica com Drummond, era missivista bissexto. Possuía várias cartas dele, mas os meus alunos chegavam, pediam emprestado e as cartas se transformavam na primeira pomba do Noé: partiam e não mais voltavam”.
Na escola, Zuca fazia as leituras obrigatórias, sem muita frequência. Até que, por uma daquelas paixões juvenis e término de namoro, caiu no que se chamava à época “fossa”, termo hoje atualizado por deprimido, numa bad trip. Por causa disso, resolveu viajar, aos 16 anos, para Belo Horizonte, como diria Drummond, para realizar “a dificílima, dangerosíssima viagem de si a si mesmo”. Pegou a sua bicicleta de pneu balão, passou pelo Arraial dos Lobos, ultrapassou o bairro na ponte criminosa, andou pouco mais de 1 km e o pneu furou, obrigando-o a retornar à sua casa, empurrando a bicicleta, se escondendo no barracão e decretando uma greve de fome, embora almoçando às escondidas na casa da sua madrinha, para despreocupação da sua mãe.
Em um daqueles dias, enquanto vivenciava o término da paixão, deparou-se com o jornal Estado de Minas, assinado por seu pai à época. Em um caderno que, nos dias de hoje, poderíamos chamar de Cultura, notou a republicação, todas as quartas-feiras, de uma crônica de Drummond que o Jornal do Brasil publicava em primeira mão aos domingos. No primeiro jornal que pegou, deu de cara com a crônica “Poeta, mulher e silêncio”, a qual o impressionou profundamente.
“Escrever não é inútil”
A partir desse momento, percebeu uma mudança em si mesmo, deixando para trás a melancolia e a “fossa”, enquanto Drummond lhe estendia a mão, por meio de suas crônicas. Mal podia esperar pela próxima quarta-feira. Iniciou o hábito de recortar as crônicas e guardá-las numa caixa de sapato. Em um dia comum, recorda-se vividamente de quando a moça que trabalhava na sua casa pegou um desses jornais para embrulhar pepino, o que resultou numa daquelas suas broncas, indignado pela afronta ao escritor.
Em 1972, tomou conhecimento de que Drummond não estava bem de saúde, só tinha uma filha, Marieta. Decidiu escrever uma carta para ele, contando muitas coisas, enviando-lhe, para melhor manuseio, as crônicas colecionadas, fixadas num caderno. A primeira página do caderno, ele deixou em branco. Resolveu escrever a carta contando isso e no final pedia um autógrafo dele na primeira página do seu caderno. Não sabia o seu endereço e enviou o material para o Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro.
Passaram-se vários dias sem nenhum retorno. Até que, numa visita ao Posto Pajé, onde seu irmão trabalhava, soube que lá chegara uma correspondência com o nome Aelson e os correios entregaram para seu irmão Aelton. Ao olhar o remetente, a surpresa: vinha da Rua Conselheiro Lafaiete, no Rio de Janeiro e quando ele abre o caderno lá estava a primeira página com a assinatura de Drummond e a carta, que dizia dentre tantas coisas: “vejo que escrever não é inútil, se há alguém disposto a ler, dia após dia, e a guardar com paciência, trabalho e carinho o que escrevemos…”
Emoção
Quando o seu filho nasceu, Zuca imediatamente escreveu para Drummond para compartilhar a notícia e perguntar se havia algum inconveniente em nomeá-lo como Carlos Pablo. Drummond lhe respondeu em 04.12.1977: “esse primeiro nome que você e sua mulher puseram no garoto não bole comigo somente por ser também o meu… Eu disse a mesma coisa, há 22 anos, quando um casal de poetas me contou que dera ao filho o nome de Carlos… O mistério, o acalento contido em duas sílabas e que nunca se esvai distingue entre mil outros o nome de meu pai”.
A carta revela claramente um ser humano vocacionado para escrever. Para ele, mesmo nos momentos em que escreve bobagens, escritores como Drummond têm algo a nos dizer. E o que o grande poeta, que realizou tantas coisas, inspira Zuca a fazer com seus filhos e netos? Drummond, por meio da palavra, de um poema como no “no meio do caminho tinha uma pedra”, fez Zuca refletir com grande prazer sobre o que ele quis transmitir ao leitor nessa poesia. Assim como o poeta, Zuca admite ter tropeçado várias vezes e a leitura o possibilitou enxergar melhor as pedras no caminho, de maneira bem diferente da primeira vez, agora com a maturidade dos seus 80 anos, com a experiência de quem observa as coisas se repetindo, tornando-as mais fáceis de serem superadas.
Jornal O Carcará
Zuca participou ativamente de movimentos políticos na cidade. Em parceria com os amigos Tadeu e Alexandre, ele contribuiu para o jornal “O Carcará”, criado com o propósito de desafiar o grupo que por muito tempo dominava a cena política local. Ele foi responsável pelo editorial, além de escrever alguns textos. O jornal foi abruptamente retirado de circulação após o terceiro número, devido a uma decisão judicial. Diante da proibição, decidiram lançar outro, o “Pinhé”, que seria uma espécie de “primo” do Carcará. Contudo, o Juiz, irritado, impediu novamente a circulação do seu primeiro número.
Zuca explica que o jornal foi concebido como uma poderosa arma de conscientização política, utilizando-se do humor responsável. O pasquim modificava e ampliava o potencial da comunicação. Em um momento de reflexão sobre o período, Zuca relembra da visita do cartunista Henfil (Henrique Filho) a Bom Despacho, que, à época, brilhava com seu Pasquim, a seu convite, para buscar um papagaio de presente. Ao chegar no Rio de Janeiro, Henfil, na sua coluna para a Revista Visão, escreveu carta para a mãe contando da sua experiência na cidade de Bom Despacho, onde ganhou a ave de presente de Zuca. Em agradecimento, Henfil produziu um importante pasquim em apoio ao então candidato: BD está com o Zuca!
Maria Angélica
Encerramos o papo quando a sua esposa Maria Angélica se dispôs a fazer a leitura de uma poesia de Zuca, escrita por ele em 1963, que me fez ficar com os olhos marejados de emoção e expectativa por novos encontros literários, quem sabe, no seu quintal: “Madrugada/ palavra bonita/ a gente pronuncia a palavra/ e então vem aquela beleza de sorriso noturno/ estrela/ lua/ conversa/ que só a noite sabe criar”…
(Vander André Araújo é advogado, filósofo e escritor / Fotos e vídeo: Vander André) – Matéria atualizada em 30.11.2023 às 10h34m.
Realmente, Drummond tinha razão! “Escrever não é inútil!” Vander, sua escrita é muito potente! Você é a reverberação do poeta e escritor em nossa vida. Que tenhamos muitos encontros a partir de seus textos! Tenho tanto orgulho de ser sua irmã e beber em sua fonte!
Muito obrigado pelas gentis palavras, que servem de estímulo!
O Zuca é nota 10
Sim, Ricardo! Zuca é uma pessoa inspiradora! E olha que captei apenas uma pequena parte da sua história. Passaria horas conversando com ele e sua esposa Maria Angélica! Obrigado pelo comentário!
A-DO-REI ESSA MATÉRIA, VANDER. MATOU A PAU! ACHEI O MÁXIMO ESSAS CARTAS DO DRUMMOND!!!
Alunos do Zuco, devolvam as cartas!!!
Hehhehe isso mesmo, Lúcio, por favor, “devolva-me”!
Ai, que conversa deliciosa! Aposto que, se pudesse, Drummond estaria junto para uma prosa, um café e uma quitanda. Quando vi o sobrenome, lembrei-me do Pablo e imaginei que houvesse uma ligação. Um homem que gosta de poesia, de plantar árvores, de quintais, já é um ser diferenciado. Que o Zuca tenha uma vida longa e saudável e que sirva de inspiração para seus conterrâneos! E que seja muito feliz com a Maria Angélica, que também deve ser adorável. Parabéns mais um vez, querido Vander!
Obrigado, Sueli! Você que tanto ama quintais e jardins, é nossa convidada para um café e uma boa prosa numa quinta em Bom Despacho! Traga as quitandas dos quintais Dores do Indaiá!