Uma historinha ecológica de doer o coração
TADEU ARAÚJO – Na minha infância e na minha adolescência o costume era não desperdiçar. Não destruir. Não jogar fora. A lei era economizar. Economizar. Aproveitar bem os livros, que na escola os irmãos iam passando, de mão em mão, para os mais novos, à medida que passavam de ano. As calças, as camisas, as meias, se rasgassem eram recosturadas com remendos e continuavam em uso. Os sapatos, se furavam o solado ou aparecia um rasgo no couro, tinha jeito. Era só levar num sapateiro – aqui havia vários como na Sapataria Vitória de Venerando Veneroso Viana, na rua do Rosário (hoje Dr. Miguel).
Pouco lixo era produzido. O lixeiro municipal era um só. Era o simpático Saquinho, que girava todos os dias pelo centro da cidade na carrocinha puxada pelo seu moroso cavalinho, denominado ironicamente por Ventania.
Reaproveitava-se tudo. Até os vidrinhos usados de remédios que eram vendidos para a farmácia São José, do Juca e do Paulo Guerra. Na do Faustininho, ou no Joãozinho Gonzaga, todas na Praça da Matriz.
Os retornos das garrafas de cerveja, pinga, refrigerante, os bares compravam de volta do consumidor.
E são justamente essas garrafas que agora me inspiraram esta “historinha de cortar o coração.”
O melhor amigo do homem
Estou morando agora na roça. Moro ali numa chácara do Condomínio dos Cristais. Lá às vezes não fico bem informado das mudanças dos costumes da vida da cidade. Não sei se é por não ter o que fazer é que comecei, segundo costume antigo, a armazenar garrafas vazias de cerveja e de refrigerante pra vender na cidade. Juntava-as recolhidas da minha casa. Da casa de meus filhos e até por doação de algum amigo ou parente solidário com este meu gesto nobre de cidadania ecológica e econômica.
Quando percebi que já juntara uma respeitável quantidade de cascos tomei uma atitude. Contei-os (os cascos). Verifiquei que passavam de um cento e meio. Recolhi uma boa quantidade de caixetas de papelão. Encaixotei-os. Coloquei a carga no meu velho carro Gol, que atualmente estou proibido de guiar por suspeita de labirintite e por minha avançada idade de 80 anos.
Fato que me está até minando a profunda vontade de viver que sempre acalentou meus dias. Por exemplo, tá tão difícil ir lá no Engenho bater saudáveis papos literários com o Geraldinho, escritor. Mas Deus é grande. Vou sarar, com a ajuda e as bênçãos do santo Padre Libério.
Um antigo provérbio diz que “o maior amigo do homem é o cachorro”. Depois que aprendi a guiar um automóvel, eu digo que “o maior amigo do homem é ele, o automóvel,” indubitavelmente.
Dorzinha no coração
Como diria o saudoso Padre Vicente Araújo, voltemos à vaca fria, isto é, ao assunto anterior, ao velho Gol 2015. Botei as garrafas dentro dele e fui pra cidade vendê-las. Mas qual o quê? Necas. A gente lá da roça e sem automóvel costuma fica mal informado. Sabia eu lá que garrafa agora passara a valer merreca nenhuma. Nenhum comerciante, mesmo as mais humildes da mais humilde bitaca das ruas, queria saber de garrafas, nem dadas, quem dirá comprada. Fazer eu o quê então com mais de 150 garrafas juntadas com tanto esforço e persistência. A resposta para isso, todos já tinham na ponta da língua: – “É mandar pro lixão da prefeitura!”
Mas em vários países do mundo como Portugal, Finlândia e outros isto não se faz. Não se fere tão mortalmente os recursos da terra. Não se mata a Terra tão covardemente. Reciclar é a grande prova de amor a ela, antes que se acabem seus recursos e morramos todos com ela.
O genial Frei Leonardo Boff, teólogo da Teologia da Libertação, opinou certa vez que a Igreja deveria incluir entre seus pecados capitais os pecados ecológicos, os crimes cometidos contra a ecologia.
E agora como é que eu ia fazer? Aprendi pela vida afora, desde os sete anos no catecismo para a primeira comunhão, que aquele que morre em pecado mortal pode ir para o inferno e em vida não pode comungar enquanto não se confessar e receber a absolvição do padre.
Jogar mais de 150 garrafas no lixão era um baita de um pecado mortal.
Eu havia feito uma promessa de comungar no dia seguinte e já confessara no dia anterior. E agora o que fazer? Não titubeei. Mandei as garrafas pro lixão. Passei na igreja matriz à noite e me confessei de novo para poder cumprir minha promessa e assim comungar sossegado. Foi o que fiz sem, contudo, me curar de todo daquela dorzinha no coração.
(Portal iBOM / Tadeu de Araújo Teixeira é professor, escritor e fundador da ABDL)
Olá Professor Tadeu.
Além dos bares que compravam os cascos de cerveja e refrigerante existia o caminhão que os recebia e dava em troca os pintinhos. A gente ia com a sacola cheia de garrafas e perguntava: “Moço, tem pintinho de um dia”? Ele eles respondia no caminhão: “Tem, mas já estão com dois dias”.
Era uma festa. O quintal ficava limpinho e a garotada criava os bichos em gaiolas, viveiros ou soltos no quintal; os que não eram comidos pelos cachorros iam para a panela nuns três meses.
Lembro-me do “Seu Euristeu”, sapateiro, e da lojinha ao lado do açougue do Denísio, ali no “Jardim sem Flor”. Trocava solado, pintava de preto ou marrom aqueles ridículos modelos plataforma que se comprava nas liquidações, “manchetados”, preto e amarelo, preto e vinho, parecendo onça ou na cor “de burro fugido”. Ficavam melhor que os novos. Também costurava e trocava gomos da bola de capotão G18 ou G32, que se desgastava no campinho de terra da rua da Biquinha; voltava seminova, depois de receber uma camada de sebo. Perto do fim a bola de couro, ralada, já tinha perdido metade do peso e furava só de ver um espinho.
Comprava-se de tudo para reciclagem: arame de cobre, alumínio, canos galvanizados. “Seu Ziquinho foieiro”, que tinha uma casa de lata na rua da Cava, perto das Casas da Companhia, colocava asa com rebites de alumínio em latas de massa de tomate, de ervilhas e de salsichas. Algumas latas de 9 litros, de óleo de soja, recebiam alça e viravam baldes para tirar água no tanque; as latas de tinta à base de água eram lavadas e viravam depósito de arroz, açúcar, feijão, farinha.
Na rua do Cemitério havia a Serraria do Valdir Saldanha. Ali as pessoas buscavam sacos cheios de serragem para preparar o fogareiro de lata; uma abertura quadrada era feita na parte lateral, em baixo e a tampa era removida. Uma garrafa era colocada deitada, pela lateral, e outra de pé, no centro. A serragem era colocada aos poucos, bem compactada com um pouco de água. Retiradas as garrafas o fogo era acesso e o fogareiro ajudava na economia do gás de cozinha (água para banho, cozinhar feijão e coisas mais demoradas). Tudo era aproveitado.