Já não fazem mais crianças como antigamente…
VANDER ANDRÉ – Há muito tempo não sou mais criança e acredito que a maioria dos que me leem agora também não seja. Apesar disso, quando encontro amigos e amigas de longa data, meus contemporâneos, nas ruas de Bom Despacho, percebo que eles ainda têm a mesma aparência, “guardam” a mesma carinha de anos atrás, com menos um pouco de inocência e do carinho de outrora e um pouco mais de recursos estéticos.
No entanto, meus personagens fictícios, algumas vezes “doidos demais da conta”, que vagam sem a noção complexa do tempo, podem ser melhor compreendidos em sua pureza infantil neste espaço onde nos encontramos no presente, mesmo sem presentes.
A imaginação é fértil, as memórias vêm e vão, num movimento frenético. Uma fotografia, uma palavra, uma música, são suficientes para liberar nosso “eu” criança neste “corpo” que enfrenta as altas temperaturas dos últimos dias em Bom Despacho, fazendo-nos cantar o hit da garotada nos anos 80: “todo mundo tá feliz…todo mundo pede bis…porque é hora de brincar”.
O dia 12 de outubro historicamente carregava a magia e o encanto do feriado nos calendários comerciais, com lojas infantis cheias de compradores, e um ócio criativo: a data comemorativa permitia emendar a semana toda, quando alguns alegavam, extenuados, estarem de “saco cheio” da escola, das crianças, de nós, os pobres coitados discentes ou filhos.
Além disso, o dia 12 é o dia santo da padroeira do Brasil, quando os fogos de artifício explodem em profusão, em homenagem à santa, conclamando os fiéis para o terço ao meio-dia. Atualmente, algumas pessoas pedem pelo amor dos deuses dos animais não humanos para que os fiéis evitem o barulho. Talvez fazendo uma nova festa noturna, apenas com fogos coloridos, como um novo réveillon na primavera.
Semana de festas
E é nesse dia de tarde quente dos nossos outubros que comemoramos, alegres, o Dia das Crianças. Levadas, traquinas, travessas, trazidas para se refrescarem nas piscinas “azuis” da Praça de Esportes, do Batalhão, ou do Ipê, em tempos passados, quando os pais e os professores estavam cansados do calor e não aguentavam mais a falta de ventilador e de atividades complementares e o final do ano se aproximava e o suor vinha escorrendo pelas faces das crianças inquietas nas salas de aula.
Naquele tempo, os “adultos” responsáveis estavam empenhados em parecer bondosos e caridosos. Parecia que eles estavam investidos em fazer isso com prontidão e ainda havia o pagamento da promessa à santa, portanto deveriam dar atenção plena às crianças, tutelar.
A escola promovia festas com palhaços durante os recreios prolongados, e tínhamos momentos refrescantes nos piqueniques nas piscinas cloradas dos clubes que tanto desejávamos, mas não tínhamos acesso durante o ano, nem tínhamos cota e também não éramos filhos de militar daquela Vila…
Além disso, durante a semana toda era uma festa sem fim, pois merecíamos esses mimos: a merenda escolar era especial, havia e acho que até hoje ainda fazem essa “gracinha” do pão de sal com molho de tomate e carne moída ou sardinha. Ainda não era comum o cachorro-quente por aquelas bandas e ganhávamos a salada de frutas onde pescávamos pedaços de uva, além do arroz com frango e o delicioso leite com Quick morango nas canecas de plástico colorido, onde molhávamos as duras bolachas Mirabel.
Momentos felizes
Dona Branca, a professora de Ensino Religioso da Escola Miguel Gontijo, era uma mulher muito caridosa. Ela sempre nos presenteava com essas comidas especiais, após as intensas sessões em sala de aula, quando cantávamos músicas sacras repetindo o som da sua vitrola portátil e repetíamos as ave-marias e pai-nossos, em terços intermináveis…
Era uma semana de festa e as cantineiras, responsáveis pela comida, se livravam do tradicional cheiro de sopa e da PTS – a proteína texturizada de soja. Elas preparavam aqueles manjares dos deuses com galhardia, recomendando: “coma pouco, menino, senão você vai se engasgar, quem nunca comeu melado…”
A disciplinária Marlene colocava ordem nas filas, nos mantendo ali quietinhos, uniformizados e famintos, evitando alvoroço e barulhos infantis naquele refeitório de azulejo branco, com acústica prejudicada. Na simplicidade das nossas comemorações no espaço público de educar, a gente vivia momentos felizes, os colegas se esbaldavam nas brincadeiras, os professores eram compreensivos.
Tempos atuais
Olho ao meu redor e vejo crianças emudecidas, entristecidas e entretidas com seus tablets e celulares. Ainda não consigo dizer se estão melhores ou piores do que eu naquela infância restrita e carente de tantos recursos, enfrentando as limitações do período da ditadura no Brasil. Nossa comunicação e expressão na época eram contidas e tínhamos acesso limitado às informações, um vocabulário restrito e vontades reprimidas.
Vivemos agora um novo Dia das Crianças e espero que, muito além de argumentarmos que já não fazem mais crianças como no nosso tempo, uma vez que este também é nosso e cá estamos vivos, por enquanto, possamos compreender o significado dessa nova geração. Malcriadas, desatentas, antissociais, egoístas? Há muito o que desqualificar diante de tanta influência tecnológica, digital, epidêmica. Seria interessante se pudéssemos localizar essa criança que ainda habita em cada um de nós e, desarmados, lancemos um olhar cuidadoso, amoroso e atento para as outras crianças.
Penso que tudo o que as crianças precisam neste dia dedicado a elas, e em todos os outros dias do calendário gregoriano, é que nós estejamos presentes, de corpo e alma. Devemos guiá-las pelos melhores caminhos, dando-lhes atenção plena e cuidando da saúde de todos, incluindo os invisibilizados, quilombolas, indígenas e pessoas com deficiência. Vamos trabalhar para superar traumas, sem violar direitos, adotando práticas educativas libertadoras e emancipatórias, garantindo um futuro melhor para toda a humanidade.
(Vander André Araújo é advogado, filósofo e escritor / Foto ilustrativa)
Reflexão necessária sobre a atenção plena não só das crianças, como também de “gente grande”. Há bonitezas que nos enchem os olhos e os corações e não deveriam ser embotadas pelas telinhas…. um grande talento tem você, Vander! A boniteza na escrita, melhor, na tecitura de cada texto que publica! Parabéns ao IBOM pela coluna! Nós, leitores, merecemos esse afeto!
Um texto coroado de sensibilidade e reflexão, que nos leva ao passado e ao questionamento do presente. Viajamos na nossa infância, enquanto percebemos muito do que se perdeu com tanta tecnologia cercando nossas vidas. Entristeço ao notar a ausência de crianças nas praças, nas calçadas, nas ruas… Quem não teve a mãe chamando pra entrar, porque já estava quase na hora do jantar, não sabe como esses momentos são marcantes na nossa existência. Nós também nos tornamos adultos que não se sentam nas cadeiras da calçada, porque também estamos obedecendo às nossas donas: as redes sociais. Parabéns, Vander, por mais esse momento de reflexão! Estejamos atentos!!!
Parabéns pelo texto rico de detalhes, emocionante. Amei sua história, adorei ler. Abraço carinhoso