Lucas Azevedo cria história a partir da carreira do avô
O jovem escritor Lucas Azevedo, 17 anos, lançou “Sargento”, livro onde faz a reimaginação detalhada da carreira do seu avô, Sargento Lourival Silva (Sô Nêgo), na Polícia Militar durante as décadas de 60 a 80. É um texto comovente, rico em informações e emoções, capaz de captar a atenção por horas.
VANDER ANDRÉ – No dia 14 de setembro, com a presença de centenas de convidados, o jovem autor Lucas Isaac Azevedo, de 16 anos, lançou o seu primeiro livro, Sargento, na sede da ACIA em Araújos. Filho de Heuller Silva, que trabalhou durante anos no Banco do Brasil em Bom Despacho, inclusive como menor aprendiz, e Soraia Azevedo, o neto “prodígio” dos bom-despachenses Sô Nego (Lourival Silva) e Dona Maria, cativou os leitores com um texto comovente, rico em informações e emoções, capaz de captar a atenção por horas.
Diferentemente do que o romancista do século XIX, Manuel Antônio de Almeida, fez no seu livro Memórias de um Sargento de Milícias, publicado anonimamente, sob pseudônimo de “um brasileiro”, contando a história do menino travesso Leonardo, cujas malandragens só têm fim quando ele é escolhido pelo chefe de polícia para ser um sargento, Lucas se expõe desde o início e diz que partiu da história real do seu avô, o Sargento reformado da PMMG, Sô Nêgo, para criar a sua própria reimaginação. Ele narra a trajetória do personagem desde o início da sua carreira operacional militar.
A obra é publicada pela Literatura em Cena, do psicanalista araujense Eduardo Andrade, que reside em Bom Despacho e orientou habilmente o escritor na criação de seu trabalho, prestando consultoria, o que resultou em uma edição primorosa à qual tivemos acesso.
Lucas é também um talentoso desenhista. Desde os cinco anos de idade, mesmo sem saber ler ou escrever, ele já ilustrava histórias que fluíam em sua mente. Com os textos prontos na sua cabeça, ele recorria à ajuda da sua mãe para transcrever as ideias que surgiam com intensidade, inspirando-o a criar representações artísticas impressionantes por meio do desenho. Seu desejo de superar desafios e dificuldades, assim como o seu anseio de expressar a sua compreensão do mundo, remonta à sua mais tenra infância. E seu talento não se limita apenas a isso. Recentemente, nosso escritor em ascensão também conquistou reconhecimento nas disciplinas exatas, recebendo a medalha de ouro na Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP) e “outras coisinhas”, como ele gosta de mencionar.
Enquanto lemos o livro, ficamos ansiosos pelo desenrolar da história, perguntando-nos até onde essa narrativa fictícia do “sempre machão” Sargento poderá chegar depois de tanta dedicação dele ao trabalho como agente do Estado, garantidor da ordem e da segurança dos cidadãos. Por outro lado, pensamos se seria possível um “novo começo” para o personagem que, para o autor, “não é um herói nem um vilão”. É notável que o autor se baseou na narrativa das histórias do Sargento Sô Nego, o que adiciona um toque pessoal à história, criando um enredo rico e complexo.
Medalhas e medalhas, inclusive pela sua participação nas ações militares de 64. Desta forma nos é apresentado o herói-vilão celebrado pelas glórias, condecorações e honrarias de um passado distante. O autor inicia a história ficcional de “Sargento” em 1971, partindo de uma indagação a respeito do protagonista: ele queria mesmo comandar uma tropa da polícia militar em Martinho Campos?
Nesse momento em que o personagem assume a sua primeira posição de comando na PM, ficamos curiosos e em dúvida se o autor do livro também deseja escrever esses casos de “tempos diferentes”. A partir daí, nos irmanamos com o seu objetivo e passamos a observar melhor esse distanciamento entre o eu lírico e o narrador que passa sua visão crítica, por meio de breves comentários, prometendo-nos uma “estória” inventada, sem precisões históricas e, em alguns momentos, dramática, partindo das memórias do seu avô.
Interessante perceber que essas lembranças da vida do avô como militar foram ditadas por ele, anos atrás, à sua esposa Maria, a pedido do autor, numa espécie de autobiografia. Folhas e mais folhas escritas à mão foram dadas para o neto e o garoto, satisfeito com o seu presente, as transcreveu e compartilhou o conteúdo recentemente apenas com os seus familiares, numa edição limitada.
Já no livro, o enredo se inicia na pequena cidade da Abadia, para onde o Sargento é enviado para substituir um comandante incompetente e corrupto “moral”, que adorava agradar ao prefeito, um “pecador”, no pré-julgamento do vigário. Após ser designado, ele ouviu a primeira crítica, por parte do Coronel, ao governo militar vigente à época, que comentou que seria necessário manter o “teatro” naquela cidade, “fingindo” manter o controle estatal sobre os crimes, evitando dissabores com a comunidade.
Para isso, ele designa o nosso “herói” à sua mais nova missão: aumentar a sensação de segurança dos cidadãos, fazendo com que as pessoas respeitassem os conceitos de cidadania, que os menores deixassem de beber e dirigir e que ele acabasse de vez com as farras nos bares e prostíbulos, especialmente com as “muvucas” dos carvoeiros, que deixavam de gastar com as suas próprias famílias.
Para o fiel cumprimento do novo edital da ordem que passa a valer na cidade, Sargento passa a contar com total apoio do Prefeito, do Juiz, e das autoridades religiosas, chegando até o Bispo em Luz. Dessa forma, passou, com sua tropa, a demonstrar a presença da polícia na cidade, sem “poupar multas, apreensões e prisões”.
O livro retrocede no tempo e passamos a conhecer a atuação do Sargento na “intervenção” militar de 1964. Antes disso, tomamos conhecimento do início da sua carreira, quando atuou brevemente em Piumhi, onde estavam chegando milhares de pessoas sem-terra e para onde ele seguiu com outros soldados, “devidamente armados e preparados para qualquer ação”.
A narrativa ganha força no momento da participação do Sargento na tropa especial do 7° Batalhão em Brasília, durante a “revolução de 64” que garantiu a posse do Marechal Castelo Branco, dando início ao período da ditadura militar no Brasil. O Sargento ainda permanece na capital por um período, visando “sufocar qualquer reação adversa e a captura de grupos contrários ao movimento”. A foto que ilustra a capa do livro, inclusive, é exatamente do grupo de militares estacionado em Taguatinga/DF, sob comando de um general do Exército. Poucos meses depois da ação, o personagem e sua tropa são recebidos como heróis em Bom Despacho.
A partir de então, e para não escrevermos tantos spoilers sobre o livro, acompanhamos a história do Sargento, nomeado a pedido do Bispo Dom Belchior em Luz, onde recebeu mais “poderes para o cumprimento e restabelecimento da ordem pública”. Naquela cidade, em contraponto a tanta religiosidade católica, há um caso bastante interessante sobre a morte de animais em uma fazenda e a ajuda à PM de uma “feiticeira”, “espírita, cigana, que lê sorte?”, “que fala com espírito e esses trem”, quando o personagem se recorda das “visões” na infância, trazendo as lembranças da sua irmã Aidê.
De volta a Bom Despacho, Sargento desenvolve ações importantes no combate às drogas, no início dos anos 80. É impressionante o seu relato no Clube Social de Bom Despacho, em que o personagem realiza policiamento em trajes civis, a pedido das autoridades locais visando parar com o “uso, tráfico, comércio e distribuição de drogas”, durante o baile de Réveillon, quando foram apreendidas substâncias ilícitas (lança-perfume, loló, maconha) e, é claro, realizadas prisões, detenções e retiradas de diversas pessoas, que muitas das vezes eram auxiliadas pelo homossexual Zezé. Nesse momento, o Sargento-narrador faz um parêntese e nos apresenta o seu irmão, que também sofre com o uso de drogas.
A história se encerra com os movimentos sindicais no Brasil e o início do processo de redemocratização, nos anos 1980, bem como os impactos dessas manifestações dos “comunistas e socialistas”, e das paralisações dos metalúrgicos, com a consequente repressão policial, por meio do trabalho dos policiais da chamada TOE, a polícia secreta da época, da qual o personagem fazia parte.
Na conclusão, somos trazidos de volta à realidade e convidados a refletir sobre a leitura de um jornal onde as informações são “mencionadas com tanto detalhe”, mesmo que alguns ainda prefiram enfatizar “receitas de bolo” em suas capas, como era comum durante a ditadura militar, preenchendo espaços em branco causados pela censura.
Lucas nos presenteia com os agradecimentos e homenagens que o seu avô fez no original do texto de memórias, quando nos preparamos para o choro e demos início a esta resenha. O autor pretende fazer o lançamento do livro em Bom Despacho, em data e local a serem comunicados. Aos que já desejarem adquirir a obra, ela já está disponível na página do autor, que você acessa CLICANDO AQUI.
(Vander André Araújo é advogado, filósofo e escritor / Fotos: Adriana Mesquita)