O “eu marginal” do talentoso poeta Lúcio Espírito Santo
LÚCIO JÚNIOR – Meu pai, Lúcio Espírito Santo, prestou bons serviços à PM de Minas durante muitos anos. Ele corrigiu monografias de cursos como Curso de Formação de Oficiais, presidiu a revista O Alferes. Seu livro Entendendo a Nossa Insegurança é muito citado em pesquisas de segurança pública. Ele é cidadão honorário de Austin, etc. Mas, nesse artigo, quero destacar o seu “eu marginal”: o literato, poeta e contista.
Eu Marginal, não por acaso, é o nome de um livro de poemas inédito de sua autoria. Há também um romance ambientado em Bom Despacho e ainda sem nome. Outro romance ainda na gaveta foi ambientado em Belo Horizonte e tem como personagem um curioso personagem de filósofo que perde-se nos “abismos da subjetividade”, o professor Clarimundo, o romance Cidade Desencantada. Agora que meu pai está aposentado, tento convencê-lo de que é preciso deixar fluir um “eu marginal”, o poeta, o contista, o literato a tirar os livros da gaveta e publicar os livros pela editora do Eduardo (mencionado aqui em colunas anteriores). Colocar a Literatura em Cena.
Ele é grande conhecedor da gramática e do “inferno divertido da análise sintática”. Outro dia estávamos comentando como as pessoas pensam que sabem as coisas, censurando arbitrariamente o gerúndio, como no caso do título de seu livro “Entendendo a Nossa Insegurança”. O gerúndio está em Camões, está nos clássicos. O fenômeno da correção excessiva e arbitrária é chamado de hipercorreção e tão grotesco e equivocado como os desvios do português padrão (para a Linguística não há erro de português, todo erro tem razão de ser).
Ele desenvolveu seu talento para a escrita basicamente na fase em que viveu em Uberaba. Nesse período, final dos anos 70, era o auge do conto no Brasil e ele publicava muito no Suplemento Literário de Minas Gerais. Nesse período ele conviveu muito com os maiores intelectuais de Uberaba de então, Erwin Pühler e Joaquim Borges. Joaquim fez um conto magnífico, Gabrielão Solé, onde imaginava Che Guevara como um personagem ao estilo de Manoelzão nos contos de Guimarães Rosa. Olhando o Suplemento na época, era incrível quantas contribuições meu pai mandava, como o conto Quando Florescem os Ipês. Uma vez em Belo Horizonte, publicou um livro de contos junto a Fernando Gonzaga, com a editora Dez Escritos: Teatro de Fantoches. Um dos contos mais curiosos é Juízo Imperfeito, onde ele utiliza os verbos todos no imperfeito para contar uma história ao gosto de Luiz Ruffato, escritor mineiro de hoje em dia: o pai que esquece o filho para trás numa viagem.
Emílio Pescando Patos
Os casos de papai são notáveis, os poemas também. Em uma viagem a São Mateus, no Espírito Santo, meu pai foi a um recanto da praia pescar. A ideia era ficar longe do serviço, da teoria, de tudo. A isca acabou, ele comprou uma espiga de milho cozido e resolveu pescar ainda mais longe, envergonhado de pescar com essa estranha isca. Mas lá longe no horizonte apareceu um barquinho. O barquinho foi aumentando, entrando na sua linha de visão, crescendo. E de repente aportou na praia. E tinha, junto dele, dois coronéis aposentados e colegas de trabalho! Os dois ficaram muito felizes com esse reencontro e curiosos em saber sobre sua pescaria. E debocharam muito quando perguntaram qual sua isca. Papai respondeu: “é milho”. Um deles respondeu: “quero saber da isca, não de seu nome”. E então, morrendo de vergonha, ele teve que suportar a gozação dos colegas: “mas você quer pescar é pato?”
Igualmente, meu pai é bom poeta, escreveu sobre um episódio importante do tropicalismo, o dia em que os estudantes de esquerda vaiaram os poetas concretistas e Caetano Veloso na USP. E os tropicalistas vaiaram a vaia em resposta. É muito espirituoso o poema de papai a respeito, tendo em vista que ele é praticamente um contemporâneo dos concretos e tropicalistas:
Vaiar a Vaia
Só o incomunicável comunica” Augusto de Campos
O Veloso bafejo da semana caetanou poucos castros
e bilaques
sentimentália, vana verba vana,
silasom, silasom, quadrados cáquis.
Complexo de Camões: os babilaques
sáfico safado, abreu bacana
Quebra dedo Parnaso tic taques
Contar sílabas é super cafona…
As zebras literárias andradinas
Marteladas tarsilam na Malfatti
Vaiaram que vaiaram o inventor
Abrace a tradição, ame a rotina
mas muita atenção pro arremate: quem Kilkerry
por último ri Millôr
Dedico esta coluna a meu pai. Sonho com a publicação de seus textos. E que vejamos emergir, enfim, o “eu marginal” desse talentoso poeta. Garanto, a cidade vai ficar encantada. (Portal iBOM / Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior é filósofo, professor e escritor / Foto: Arquivo família).