Quem “vos” escreve seria eu?

VANDER ANDRÉ – Enquanto me dedico a escrever esse texto, ao som convidativo dos tambores e da sanfona do Reinado em Bom Despacho, uma voz aqui do lado me excita, tenta me convencer a usar o Chat GPT, me possibilitando ganhar tempo (como é fácil perder o danado) para poder curtir o ócio nas redes sociais, em (re)publicações de TBT ou maratonando séries nos serviços de streaming, tipo Netflix. 

Desde que nós, homens, nos entendemos por gente e a mulher também, diga-se de passagem, buscamos meios de sobreviver e de descobrir novas formas para facilitar e conservar as nossas vidas. Tentamos, a todo custo, economizar tempo, dinheiro e trabalho. Somos submetidos a procedimentos estéticos para amenizar rugas e marcas de expressão com botox. Curtimos o presente adoidado, antecipando o futuro e, para sermos bem atuais, deletando ou delegando o passado, como quem faz juízo de valores, concluindo que não vale a pena morrer, pelo menos por agora. 

Dessa vez, o ser humano parece ter ido longe demais e parece já não saber mais o que fazer com sua mais recente descoberta, o Chat GPT. Ele é considerado uma tecnologia disruptiva, utilizado por milhões de pessoas, que usa a inteligência artificial (isso existe?) para responder às mais insólitas questões da nossa curiosidade humanoide. O chat chega ao absurdo de “escrever” acrósticos em segundos, resolver dificílimas equações matemáticas para alegria dos vestibulandos, escrever sonetos, músicas, valendo-se de insumos básicos de quem formula as questões. Além disso, resume longos textos, elabora artigos, discursos e muitas coisas mais. 

O nome Chat GPT é uma sigla para“Generative Pre-Trained Transformer” – algo como “Transformador pré-treinado generativo” que foi desenvolvido nos Estados Unidos. Desta forma, não perca tempo, ligue já, use e abuse da novidade, mas não se esqueça de que ele é apenas uma ferramenta que é “incapaz de criar novas coisas, apenas interpreta e esclarece com base no que já sabe”. E, vale lembrar, é uma simples ferramenta humana, na sua versão beta, gama. Como somos precavidos e já lemos por aí que “o homem é o lobo do homem”, portanto, sejamos cautelosos na sua utilização, o que não há de nos fazer mal. 

Agora que fui convencido a usar a novidade pelo efeito manada (não quero ser o último dos moicanos a se beneficiar das maravilhas do mundo virtual), uma nova voz, agora do inconsciente, talvez você pense assim, ou do além, me pergunta: com essa larga utilização do robô, onde ficariam a originalidade, a sensibilidade, o “eu lírico”, o estilo dos autores, que até tempos atrás ainda poderiam contar com o seu direito autoral? 

Pensando nessa questão, alguns leitores vorazes poderiam afirmar, com conhecimento de causa, apontando para os livros na Biblioteca: Ah, mas esse texto é do Guimarães Rosa, disso tenho certeza, perceba a riqueza vocabular, o seu “lugar de fala”, o conhecimento que ele tem do sertão! Ah, mas esse texto é do bom-despachense Dilermando Cardoso, que escreve um romance como ninguém, sobre o Engenho do Ribeiro, resgatando da sua memória palavras e situações que só mesmo ele poderia ter experimentado e nos presenteado no seu mais recente livro: Sertão meu: Gerais. 

Ah, mas esse quadro aqui do lado é do Carlos Madeira, perceba seus traços característicos, como ele pinta maravilhosamente essa obra, um senhor, que parece ser seu pai, com o rádio de pilha, com o estilo realista que nos faz ficar pensando se ela não é uma fotografia. Ah, mas essa fotografia premiada internacionalmente aqui é do Wilson Fortunato, veja o enquadramento que ele faz dessa abelha no processo de polinização! 

Se lançarmos cotidianamente na rede mundial “tudo” o que nos acontece, em imagens, discursos de ódio ou de amor, palavras, atos e omissões, confesso que tenho medo do que há de surgir nas respostas oraculares desse robô que tem o ingênuo propósito de nos auxiliar. 

Portanto, por ora, esse que vos escreve ainda pretende manter seu jeito próprio de falar e escrever. Usa e abusa das palavras que aprendeu ao longo da sua vida, nos bancos escolares do Martinho Fidelis e Miguel Gontijo, numa caligrafia invejável, inventa uns imbondos, porque teve o privilégio de conhecer a língua da Tabatinga, essa sim, que ele insiste em conservar na memória e incorpora nos seus diálogos, como bem faz o Tonhão, com as imagens no seu museu virtual. 

Não há chat GPT nenhum que saiba “tudo” o que enfrentamos até então. “Graças a Deus”, alguns dirão; outros, mais céticos, ao desconhecimento que temos e outros, mais ecumênicos, aos deuses e deusas. O fato é que ele não conseguirá saber, ainda, os bastidores da nossa luta diária, o desejo indômito que temos de nos comunicar, promovendo a comunhão de pensamentos, de nos relacionar com outras pessoas, tampouco dos métodos que utilizamos para levar vantagens, corromper, expiar a culpa cristã, curar os males, amenizar as dores, questionar sobre nossa essência, por que morremos ou nascemos, nossos valores e nossa cultura como pessoas presentes nessa cena espetacular que se abre diariamente para todos nós nesse mundo que é real.

(Vander André Araújo é advogado, filósofo e escritor / Foto: Carlos Caminha)

2 thoughts on “Quem “vos” escreve seria eu?

  • 26 de agosto de 2023 em 15:34
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    Poesia, puro amor! Em lágrimas de felicidade, únicas, que nenhum Chat Gpt conseguirá sentir

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  • 26 de agosto de 2023 em 19:07
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    Mais uma pérola do querido amigo. Como diria Nicolelis, cientista famoso do Brasil sobre a IA, não é inteligência e não é artificial.
    Seu belo texto me remete a “Lunik 9”, de Gilberto Gil:
    “Poetas, seresteiros, namorados, correi
    É chegada a hora de escrever e cantar
    Talvez as derradeiras noites de luar.”

    Falava do desencantamento da Lua, quando da chegada da nave espacial Lunik 9 no nosso satélite, das fotos que desnudavam uma paisagem fria e rochosa, em contraponto à visão romântica que através dos séculos tinha-se criado do luar.

    Teremos dado um passo a mais na cessação do lírico e do poético?

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