Vivendo fortes emoções com nosso Reinado
ROBERTA GONTIJO TEIXEIRA – Minha relação com a festa do Reinado sempre foi de espectadora. Até ano passado, quando resolvi acompanhar um pouco mais de perto, ouvir os relatos e fazer alguns registros. Esse ano, decidi dançar e participar “do lado de dentro”.
Não sabia nada sobre os compromissos que vinham pela frente. Pedi para entrar já com a festa em andamento, me aceitaram e eu resolvi mergulhar de cabeça.
A justificativa que dei para mim e para quem me perguntou é que queria iniciar a celebração dos meus 50 anos agradecendo a Nossa Senhora por uma vida de bênçãos. Mas a verdade é que, ainda hoje, não sei exatamente porque há 49 vivendo em Bom Despacho, só agora decidi dançar Reinado.
Holdry, a capitã que divide o tempo conduzindo o corte e amamentando sua filhinha, me incluiu, a pedido, no grupo de whatsapp. O primeiro compromisso marcado, depois que entrei, era um encontro numa casa que fica na Tabatinga, bem perto do Caic.
Fui bem insegura. Na verdade, ainda fico insegura a cada encontro. Não conhecia ninguém. Não sabia qual seria a programação e tampouco o que eu deveria fazer. Sabia apenas que eu estava no corte Moçambique da falecida Dona Sebastiana, deveria usar branco e estar lá no horário combinado.
A concentração foi no terreiro da Dona Sebastiana, com seus filhos, netos, bisnetos. Acho que eram todos, ou quase todos, do mesmo núcleo familiar.
Apesar da minha sensação de peixe fora d’agua fui bem recebida.
A concentração, antes da saída, deu-se no Terreiro da dona Sebastiana, um espaço relativamente pequeno, com várias espécies de santos e altares, bancos por todas as laterais e, naquela ocasião, cheio de crianças, mães e jovens. No meio deles Dona Maria e Sr. Eustáquio, reis do Moçambique, em que D. Maria é a Rainha de Santa Efigênia e o Sr. Eustáquio o Rei de São Benedito. Os reis devem beirar os 70 anos e carregaram uma longa capa nas costas e uma coroa na cabeça por todo o caminho que percorremos.
Todos estão sempre muito bem vestidos, as roupas são lindas, brancas, com turbantes e saias que variam de cor conforme o dia da comemoração. O pescoço sempre cheio de muitas guias, terços, rosários. Nos sentamos em círculo e eles conversaram intimamente em volta dos instrumentos amontados no chão e ornados com fitas coloridas, que no dia anterior eu havia ido ajudar a colocar.
Depois de algum bate papo e um pouco de espera, inicia-se o ritual de saída, onde rezamos e pedimos a proteção para cumprir e vencer mais um dia de festa. Rezamos, cantamos e tocamos os instrumentos, cada um de posse do que escolheu ali no chão (gungas, caixas, tambores, meia lua e patangonas).
Naquela sala pequena e fechada, com todos vestidos de branco, o som forte dos tambores misturado aos outros instrumentos, meu coração disparou. Saímos para a rua bem vazia. Soprava um vento fresco. Ficamos por ali, dançando e cantando por um tempo na porta da casa. Em seguida, partimos para o que eu vim a descobrir depois, seria a missa e o encerramento da novena.
Entramos numa igreja do Rosário lotada, ao som do nosso próprio canto, dos nossos tambores e instrumentos e sob uma chuva de papel picado, jogada do alto sobre as nossas cabeças. Eu fiz tanto esforço para conseguir segurar o choro que mal consegui rezar.
O ritual foi lindo. A missa, o encerramento da novena a apresentação dos outros cortes.
Então, as luzes se apagaram e começou a coroação de Nossa Senhora. Geralda, que foi minha vizinha e amiga de infância, ajudava no coral da igreja, que passou, naquele momento da coroação, num som uníssono com todos os presentes, a cantar “Nossa Senhora me dê a mão, cuida do meu coração, da minha vida, do meu destino, do meu caminho, cuida de mim”. Nessa hora não foi mais possível segurar o choro.
Eu estava cercada pelo “meu” corte, que naquele momento silenciou os instrumentos e apenas se uniu ao coro da igreja. A maioria dos que estavam ao meu lado eram bem jovens. A Luana, uma menina linda, que se disponibiliza para ajudar todo o tempo e que carrega por horas aquela caixa de tambor enorme, os gêmeos Rafael e Gabriel, que do alto dos seus 12 anos, acredito eu, cuidam das gungas com toda eficiência, o Lucas sempre com uma energia vibrante, o Victor, um menino alto, de 14 anos, com um semblante sério que parece conhecer todos os hinos. A Alice, que mais parece uma boneca e está ali, ensinando e aprendendo a lição de seus antepassados. O Henry, que vibra a cada nota que entoa e parece um adulto cantando, isso só pra listar as crianças do corte.
Naquele momento, só conseguia me lembrar do quanto tenho desejado um mundo melhor e da intenção da reza que temos feito todos os dias no terreiro da dona Sebastiana: pelas crianças.
Pedi profundamente pelo caminho da minha filha, de cada um dos meus sobrinhos e de cada criança que lembrei que conhecia e, particularmente, pelas que viviam uma vida de poucas oportunidades. Pedi por aqueles meninos lindos do “meu” corte, que pudessem estudar, crescer e usar toda aquela beleza, energia e fé vida afora, cumprindo seus destinos e construindo um mundo melhor. Olhei para trás e vi o Miguel, um outro menino que faz parte do grupo. Ele deve ter uns nove anos e, sem uma das mãozinhas, adapta um feltro no braço e por todo o percurso, toca comprometido, orgulhoso e entusiasmado seu tamborzinho.
A coroação terminou sob uma chuva de fogos de artifício soltados do lado de fora da igreja, dos quais só conseguimos ouvir lá de dentro e que, misturados ao som da música, me fizeram chorar ainda mais.
Por fim, depois de algum tempo andando, rezando e tocando, o cansaço veio, e eu, que vivo matraqueando, consegui ficar em silêncio, olhar para o Sr. Eustáquio, Dona Maria, as crianças e todos os meus companheiros Moçambiqueiros, seguindo ainda procissão com a mesma devoção do início e me entreguei simplesmente a aproveitar as ruas de Bom Despacho, observar os arredores e agradecer a oportunidade.
Ainda não sei porque decidi dançar reinado. Ainda não sei porque escolhi o Moçambique da Dona Sebastiana. Dizem me alguns de meus amigos dançadores de Reinado que não somos nós quem escolhemos. Somos escolhidos.
Só sei que a festa do reinado mal começou e muito tem me ensinado e proporcionado.
Nesses poucos dias de experiência, já senti um misto gigante de emoções.
As vezes uma fé imensa, renovada, como há muito tempo não sentia, uma alegria entusiasmada, que me faz esquecer que estou numa festa religiosa e me permite vibrar ao som do tambor, dançar e pular como se fosse carnaval. Em outros momentos sou invadida por amor e gratidão por aquelas pessoas à minha volta, por me acolherem no núcleo de sua família e da tradição que carregam há tanto tempo, me permitirem aprender sobre sua cultura e viver tão fortes emoções.
Salve o Brasil, Bom Despacho, nossas riquezas, diversidades, culturas e tradições.
Salve São Benedito! Santa Efigênia e Nossa Senhora do Rosário!
Obrigada Moçambique!
(Portal iBOM / Roberta Gontijo Teixeira é bacharel em Direito, ambientalista e servidora pública federal / Fotos arquivo)