“Índio já foi um dia o dono dessa terra”

VANDER ANDRÉEm tempos de sucesso de Barbie nos cinemas, discutindo temas importantes sobre patriarcado e feminismo e a série documental da Xuxa, tentando contar um pouco da tumultuada vida desse ícone infantil nos anos 80, me aproprio dos versos que a rainha loira dos baixinhos cantava sem muita afinação, para dar título a esse texto e chamar a atenção para a importância dos povos originários, resgatando um pouco da história da nossa cidade e a formação do povo bom-despachense. 

Vamos “brincar de índio”, fantasiar de “índio” nas escolas no dia 19 de abril, fazer “programa de índio” no final de semana: isso não dá mais para ler ou ouvir por aí! Basta! Temos que ser cuidadosos com a linguagem, a forma como tratamos os indígenas. Devemos respeitar a origem dos povos que habitam o Brasil muito antes do seu “descobrimento”, propagado em livros de história pelos portugueses, numa manhã de abril do início do século 16 e que hoje sofrem ameaças de toda a sorte, apoiados por poucos e bons ambientalistas. 

No tempo da invasão europeia, contávamos com uma população de 3,5 milhões de indígenas habitando esta terra Pindorama (nome dado por eles), que se dividiam em quatro grupos linguístico-culturais, quais sejam: Tupi, Jê, Aruaque e Caraíba. 

Índios em Bom Despacho

Nesta semana, o IBGE divulgou os dados do último censo sobre a população indígena no Brasil e, assim como em outras 4.831 cidades brasileiras, identificamos 31 (trinta e um) deles como moradores de Bom Despacho. Veja aqui a reportagem da Folha.

Conhecer um pouco mais sobre os povos originários é importantíssimo para que possamos transmitir a cultura local e levar adiante a memória coletiva da nossa cidade. No livro “O povo do cativeiro e a Senhora do Rosário – Reinados e Congados em Minas Gerais” (2018), ricamente ilustrado por estudantes de escolas públicas de Bom Despacho (exemplares disponíveis na Biblioteca Pública de BD), a pesquisadora Patrícia A. Brandão Couto conta o mito de origem da Senhora do Rosário, uma versão preponderante dos congadeiros de Bom Despacho. No enredo do livro, a santa “aparece para protestar contra a escravidão e a desigualdade dos direitos entre os homens”. 

Presença do índio

E o que é mais interessante perceber é que essa é uma festa que “ao longo de sua história veio a congregar negros, brancos, índios e mestiços nesta devoção.” Nas páginas 58 a 61 desse livro, encontramos o texto: “Foi quando os índios que estavam escondidos, vendo aquela peleja, saíram do mato e começaram a desbastar caminho com suas machadinhas para que o povo do Moçambique pudesse passar com a Santa. Assim, tomando o rumo do engenho, seguiram à frente os índios do Penacho, abrindo o caminho para os moçambiqueiros que traziam a virgem”. 

Esse fragmento do livro foi uma descoberta maravilhosa, mesmo em se tratando de um relato oral de um mito, pois alterou o meu olhar sobre a festa que está acontecendo pelas ruas da cidade, como há muitos anos e que se iniciou com a subida do mastro no último dia 30 de julho, na Praça do Rosário, trazendo para mim novos significados para as cores, penas, brilhos, cantos e orações dos devotos. 

Corte dos Penachos

O corte dos Penachos sempre foi um dos meus favoritos. Desde menino, quando ainda corria atrás dos dançarinos pelas ruas ainda sem calçamento de Bom Despacho, me emocionava com o jeito original deles cantarem, tocarem, dançarem em louvor à santa. Moleque arteiro da rua do Capivari, eu pegava as poucas penas de galinha d´Angola que minha mãe havia utilizado para fazer a peteca (palavra indígena) de casca de bananeira, feito para nós brincarmos à época, e me transformava em mais um camoninho daquele corte tão bonito, batendo com vigor a latinha de massa de tomate, que fazia as vezes de pandeiro, para acompanhar o ritmo do congado.

Agora, já homem feito, aprecio o cortejo, deixo o batido forte dos tambores tocar meu coração e me emociono com a fé do povo que lota as ruas e igrejas, reforçando a tradição da Festa do Rosário em nossa cidade. Torço para que, assim, como eu, mais pessoas consigam abrir seus olhos para a presença, ainda que pequena, desses povos indígenas na cidade, conhecendo suas peculiaridades, suas necessidades como grupos minoritarizados. E, dessa forma, contribuam para a divulgação dos direitos humanos e as conquistas sociais oferecidas pelos entes públicos. 

Que também possamos nos orgulhar dessa que é a maior festa da nossa região. Vamos sair da nossa costumeira “cari-oca” (casa do homem branco), prestigiar a Festa do Rosário, que a cada ano fortalece o turismo cultural e religioso em Bom Despacho, permitindo que os seus “reis” e “rainhas” consigam “marcar um x, um x no seu coração”…

Palmas, muitas palmas, para todos os cortes que desfilam com galhardia em nossa cidade neste período e a todos os organizadores da Festa. E antes que eu me esqueça, que em 2023, nosso olhar curioso e infantil possa encontrar, partindo do texto da Patrícia Couto, e por que não, da exibição do corte do Penacho, toda a riqueza cultural que os povos indígenas trouxeram e continuam a preservar na nossa cidade. E que juntos, comemoremos neste dia 9 de agosto, o Dia Internacional dos Povos Indígenas!

(Portal iBOM / Vander André Araújo é advogado, filósofo e escritor / Fotos: Penacho BD)

One thought on ““Índio já foi um dia o dono dessa terra”

  • 9 de agosto de 2023 em 15:10
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    Muito apropriado o artigo desta semana. Fui Diretora do CESEC, em Bom Despacho, e lá tive a honra de acolher três estudantes que se autodeclararam indígenas e fizemos parcerias com a Escola Estadual Indígena Caxixó Taoca Sergia – em Martinho Campos MG. Em MG, temos aproximadamente 4.500 estudantes indígenas em toda a rede e o tema nos remete à meta 8 do Plano Decenal de Educação, que por sinal passará por atualização no próximo ano, e deverá fazer parte de nossas discussões futuras, pois se queremos elevar a escolaridade média da população de 18 a 29 anos de modo a alcançar mínimo de 12 anos de estudo para as populações do campo, indígenas e quilombolas e dos 25% mais pobres, bem como igualar a escolaridade média entre negros e não negros, com vistas à redução da desigualdade educacional a urgência do debate deve estar no nosso radar como cidadãos. Parabéns pela pauta!!!

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