Benício Cabral e seu dicionário da Língua da Tabatinga

VANDER ANDRÉMorador da região da Biquinha, nosso ponto turístico por excelência, Benício Cabral, o “Aurélio” bom-despachense, nos recebeu em entrevista na semana passada e contou que sempre teve uma boa relação com o povo da Tabatinga, a partir dos folguedos de rua. 

É dele e do seu parceiro de pesquisa, Ivã Rodrigues, “Comodoro”, o dicionário disponível na Internet, datado de 1985, contemplando traduções de palavras da língua dos negros da Costa, moradores do tradicional bairro da nossa cidade, para a língua portuguesa. O dicionário foi atualizado com as novas pesquisas da professora Sônia Queiroz, no seu livro “Pé preto no Barro Branco, A língua dos negros da Tabatinga” (1998). Confira CLICANDO AQUI

O menino Benício vivia indo lá praquelas bandas da Cruz do Monte, descendo até a Tabatinga, acompanhado dos destemidos irmãos maiores e dos demais amigos, convivendo com aqueles cuetes que tinham fama (e com razão) de brigadores. Com eles, ninguém caçava treta. Eram fortes e corpulentos, “cantavam de galo no terreiro” e falavam palavras estranhas, num código até então desconhecido para eles. 

Com o tempo e a convivência pacífica, acabou aprendendo diversas palavras daquela língua. Quando encontrava com os danados, que prestavam serviços engraxando sapatos na porta do Cine Regina, onde seu pai, Totônio Cabral, foi gerente durante vários anos, ou do Bar Tupã, onde sua mãe era proprietária, sentia-se protegido, criava coragem e duelava com os demais, superando sua timidez e estabelecendo contatos, chamando-os de cuete tibanga, cuete ocaia e outros xingamentos triviais.

Casa na rua da Tabatinga, ilustração em aquarela, por Carlos Caminha, para o livro Roupa Suja de Inconfidente (2020)

Por precaução, tal valentia não ocorria nas tardes em que ele rumava, com seus irmãos e amigos, até o inesquecível ribeirão Tira-Prosão, que ficava ali mais adiante do CAIC Tabatinga. Eles desciam o morro da Rua do Céu, cruzavam a linha do trem e lá naquele lugar, a turma fazia festa e demonstrava habilidades físicas, na espetacular prova olímpica de natação. Para Benício, a grande lagoa que se formava e que hoje praticamente está seca, notadamente no período das chuvas, tinha uma dimensão enorme e não era para o seu bico, contentando-se em apenas ver as exibições dos garbosos atletas da Tabatinga. 

Vez ou outra – assim ele conta -, eles resolviam “nadar de braçada” e faziam a festa no “açude”. Tempos depois, o memorável Zé Toniquinho relatou algumas dessas festas que ocorriam no Tira-Prosão no seu livro “Minha vida meus amores” (2006), nas páginas 87-91, que, para ele, era proibido para “inteligências” menores.

Na juventude, Benício trabalhou no Hotel Glória e Ivã Comodoro no Hotel Letícia. Preocupados com a perda da língua que cada dia tinha menos falantes nativos na cidade, trataram de anotar as palavras das suas memórias e catalogá-las. Benício credita ao bem-humorado e simpático Comodoro, que naquela época morava próximo da Praça São José e frequentava os botecos da Tabatinga, onde contava piadas e garimpava palavras, a realização do primeiro esboço do dicionário nos anos 80. 

Além disso, ele se recorda de ter tido acesso, nesse período, a uma rara e preciosa fita cassete com gravação de diálogos e entrevistas de um morador da Tabatinga, o Bacará, falante da língua da Tabatinga, em que ele apresentava várias outras palavras, com suas variantes. Como exemplo a palavra original candambora, que na evolução da língua era falada como caramboia (galinha), também foi agregada ao seu dicionário. Também nessa época o jovem Benício colaborava na redação do jornal editado pelo Itamar Brasinha e, juntamente com a advogada e professora Francisca Fonseca, colecionava novos termos para seu estudo lexicográfico. 

Benício conta histórias de outras pessoas da Tabatinga, que sempre lhe municiavam de palavras, como a Paré, uma falante eloquente, com quem sempre topava na rua e o cumprimentava com o tradicional e simpático: “ô, cuete!”. Quando perguntado sobre o contato com a lendária Dona Tiana, relata que, um dia, ele e outro estudante foram visitar o seu terreiro. Isso na época em que era atuante no Grupo Teatral Porta Aberta e tinha a ousadia dos artistas para visitar aquele local tão “discriminado” pela sociedade. Dona Tiana abriu as portas e os recebeu com muita simpatia, compartilhando também outras palavras para seu universo de anotações. Além delas, ele se recorda de outra famosa falante da língua, a negra Buduxa, mulher vistosa, que vivia alegre por aquelas bandas. 

Quando a Sônia Queiroz lançou seu livro em Bom Despacho, nos anos 90, Benício tratou de incorporar ao seu Dicionário o novo vocabulário, objeto de pesquisa acadêmica que comprovou que aquela língua falada viera do continente africano. O livro trazia palavras desconhecidas até então para ele, como “curimbar” (trabalhar) e “fitar viru” (morrer), o que possibilitou ampliar o seu repertório. Datilografou e foi catalogando as palavras, com seus significados e classificações: substantivo, adjetivo, masculino, feminino… 

Benício lamenta que hoje é raro ouvir alguém na cidade falar palavras da língua da Tabatinga, o que nos anos 70 e 80 era bastante comum. Hoje, a língua falada no local que se chama Ana Rosa virou algo folclórico e exótico, dando nomes a empresas e produtos, numa estratégia de marketing bem acertada e entusiasta. Ele questiona o fato de ainda não contarmos, na cidade, com nenhum bairro, rua ou logradouro, intitulados com alguma palavra da Língua da Tabatinga, restando-nos contentar com o “desconhecido” nome do Sesc, Conjolo de Vissunga, atual sede do Executivo Municipal. 

O agora senhor aposentado Benício ainda não parou para pensar em um projeto sobre seu Dicionário. Porém, ele gostaria muito de ver a língua peculiar e autêntica de Bom Despacho, que já foi objeto de tese de doutorado na UFMG, cada vez mais falada no cotidiano das gentes, com mais pessoas se comunicando dessa forma que é a marca registrada da cidade, evitando que documentaristas cheguem até aqui chamando-a de gíria ou dialeto. 

Há muito a estudar sobre o tema e ele cita algumas curiosidades sobre a língua que nos chamaram a atenção como a palavra opepa, que significa bonito e bonita apenas para designar o sujeito branco, visivelmente discriminatório, por não considerar o homem ou a mulher pretos e seu antônimo, oveva, que significa feio, torto, estragado… 

Ele também escreveu um conto na língua da Tabatinga, disponível no seu blog, visando documentar essa pesquisa e forçar o treino do vocabulário, desenvolvendo uma história de um sujeito que trabalha na zona rural, tomador de cachaça e que decide ir para a zona, onde os viriangos o prenderam, falando naquela língua que ninguém entendia… 

Benício propõe a realização de eventos, com o apoio e fomento cultural da Prefeitura, que possibilitem às pessoas dialogarem utilizando palavras da língua dos negros, intercambiando novas palavras conhecidas, como hoje vem ocorrendo com as aulas de capoeira conjugadas com o ensino da língua pelo Grupo Afrominas, numa tentativa de reavivá-la, deixando o convite para os maiores de dezoito anos: “Vamos lá no Bar do Chen, cachar uma matuaba!”   (Vander André Araújo é advogado, filósofo e escritor) – Matéria atualizada às 12h10m de 05.08.23

One thought on “Benício Cabral e seu dicionário da Língua da Tabatinga

  • 5 de agosto de 2023 em 10:21
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    Esse registro da entrevista com Benicio valorizando a língua da Tabatinga, nossas raízes, inspira não somente as políticas públicas locais, como também o trabalho coletivo na comunidade em todos os espaços seja na sala de aula, no banco da Praça, nos povoados….oh cuete-avura, Vander! Que sua escrita nos fortaleça para que o sonho de Benício e nosso seja realizado! D. Fiota, Tiana e tantos outros devem estar em festa neste momento. Parabéns!

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