Festa do Reinado: a força da fé de um povo

 

ROBERTA GONTIJO TEIXEIRA – Neste último ano, acompanhei um pouco mais de perto a festa do Reinado, que muito me chamou atenção pela alegria, beleza, narrativa e tradições. Decidi dançar em um dos cortes neste ano de 2023 para acompanhar as celebrações e conhecer as histórias. Embrenhar, ainda que superficialmente, na história. Ver fotos, saber versões, prosear com os membros. Como a vida inteira fui vizinha do Miguel, na Vila Aurora, resolvi começar meu “passeio” pelo corte Guarda de Congo Catupé Estrela do Oriente.

Fui até a casa da Dona Vilma, viúva do Miguel e mãe do Luiz, onde fui gentilmente recebida por eles e pela Andreia, minha amiga de infância. Dona Vilma iniciou os relatos e depois passou a palavra ao Luiz, que fez comigo uma viagem histórica sobre a festa e o corte do pai, do qual hoje é capitão. Muitas vezes Luiz me dizia não saber o que era história e o que era lenda: “Só sei que aprendi assim”, afirmou muitas vezes.

Não espero, portanto, trazer aqui uma narrativa fiel dos fatos ocorridos, mas apenas a versão do Capitão Luiz. Pretendo, na medida do possível, conhecer e ouvir cada um dos 28 capitães dessa cidade. Espero que cada um conte e acrescente sua narrativa. Hoje, fico com a do meu vizinho de muitos anos, Luiz Alberto Alves, capitão do corte Guarda de Congo Catupé Estrela do Oriente, que nasceu em 10/08/1983.

Luiz é proprietário de um açougue na Vila Aurora, onde sempre viveu. Noivo de Aline, filho caçula de José Miguel Alves e Vilma Maria Alves, irmão de Adélia, Andreia, (Heitor, Miguel Ângelo e Ronaldo, os três últimos já falecidos). Ele nasceu e cresceu participando do Reinado no corte de seu Pai, hoje falecido. Luiz é também embaixador e tirador de versos da Folia de Reis, cantoria linda que pude presenciar em algumas ocasiões.

Segundo ele, tudo começou em Ouro Preto, com Chico, nome dado ao escravo Galanga no Brasil. Rei do Congo, Chico acabou sendo capturado junto com a família (a esposa, um filho e uma filha) e, também, alguns súditos, tornando-se escravo no Brasil. Durante a travessia do navio negreiro que os trazia, houve uma grande tempestade e sua filha e esposa foram jogadas ao mar para aplacar a fúria dos Deuses.

Chico, seu filho e seus súditos, apesar da penosa travessia, chegaram vivos ao Rio de Janeiro e foram vendidos ao proprietário de uma mina chamada Encardideira, localizada em Vila Rica, atual Ouro Preto. Extraíam ouro diariamente. Chico trabalhou duro até comprar sua liberdade e a de seu filho. Conseguiu, num segundo momento, comprar até a mina da Encardideira, devido a dívidas contraídas por seu antigo senhor, alforriando, assim, diversos escravos. Segundo as histórias que Luiz aprendeu, Chico não apenas trabalhou duro, mas também, nos momentos de transformação do ouro em pó, conseguia aumentar suas economias, armazenando parte do valioso pó nos cabelos e guardando a preciosidade dentro de imagens ocas de Santos.

Após a compra da mina Encardideira e a alforria de muitos negros, retomou seu posto de origem entre os Congos e passou a ser considerado rei pelos seus. Mesmo sendo proprietário da mina e considerado rei entre os negros, Chico e os seus eram proibidos de entrar nas igrejas para adorar Nossa Senhora e professar sua fé.

Sua devoção a Nossa Senhora do Rosário e a Santa Ifigênia, no entanto, era tão grande que fez com que, com a ajuda de outros escravos alforriados, construísse, por volta de 1780, em Ouro Preto, uma igreja para realizarem suas festas e manterem vivas suas tradições. A igreja recebeu o nome de Santa Ifigênia do Alto da Cruz e, segundo Luiz, quem vai a Ouro Preto até hoje tem a chance de visitá-la.

A partir da construção da Igreja, intensificaram os festejos e o Reinado esparramou-se pelo interior de Minas Gerais, alcançando Bom Despacho.

Conforme sua narrativa, há controvérsias acerca do ano da chegada da celebração a essas plagas.

Conta que foi descoberto, recentemente, no Cartório de Mariana, um registro de 1808 de uma Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Freguesia de Nossa Senhora de Bom Despacho do Picão. Ele acredita que essa irmandade funcionava como uma associação que apoiava a resistência dos negros contra o sistema escravagista e ajudava inseri-los na sociedade colonial, preservando ritos, tradições e costumes sob a aparência de festa religiosa.

O capitão Luiz Alberto Alves
O finado capitão Miguel

No entanto, Luiz afirma que a maioria dos relatos diz que a festa chegou a Bom Despacho muito tempo depois, através de um padre chamado João José da Silva Cipriano, que veio para cá, em 1848, a fim de celebrar um batizado e, em 14 de julho de 1849, fez a primeira festa, acabando por ensinar a tradição.

Por muitos anos, em Bom Despacho, os negros não podiam entrar nas igrejas. Tinham que levantar o mastro e sair da matriz para dançar na periferia. Sentiram, então, necessidade de construir sua própria capela. Ela ficava, inicialmente, na Praça da Inconfidência, no meio da rua do Rosário que, àquela época, começava na Praça da Matriz, estendendo-se pelos locais que ocupa hoje.

Luz contou-me também sobre a participação importante de alguns padres na história da festa. Segundo ele, com o Vigário Nicolau o Reinado foi ampliado e incrementado mas, após sua morte, os eventos foram reduzidos. Já com Padre Augusto a festa passou a acontecer duas vezes por ano, porque era necessário arrecadar dinheiro para a construção da Matriz.

Naquela época, contou Luiz, não havia princesas nos cortes, apenas juízas. Elas tinham um envelope com as arrecadações e eram buscadas em casa pelos membros do grupo e trazidas ao salão São Vicente, sob a proteção de uma sombrinha para evitar a exposição ao sol. Era um luxo ser juíza.

Por volta de 1930 o Reinado foi proibido pela Igreja e as festas negras religiosas, que já não eram bem vistas, passaram a ser perseguidas.

Antiga igrejinha na Praça Inconfidência

Pra minha surpresa e tristeza, Luiz me falou que, logo após esse período, por volta de 1932, com a perseguição em alta, a capela da Pracinha da Inconfidência teve que ser destruída, sob a alegação da necessidade de alargamento da rua do Rosário, no trecho onde está hoje a rua Dr. Miguel.

A tradição, no entanto, manteve-se forte entre algumas das grandes famílias de Bom Despacho, tais como os Cardoso, os Lopes Cançado, os Rufino e outras tantas devotas de Nossa Senhora do Rosário. Assim, por volta de 1940, alguns membros dessas famílias passaram a reivindicar a liberação e o retorno da festa.

Dentre eles, segundo Luiz, destaca-se dona Zezé do João Araújo, que era categórica na reivindicação da volta dos festejos, exigindo, inclusive, que seu marido fosse fazer diretamente ao Padre a exigência. Segundo ele, a história que corre é que João Araújo, sob pressão da Dona Zezé, foi bem incisivo com o padre, chegando até a mostrar-lhe uma arma de fogo na cintura como forma de convencimento pelo retorno do Reinado.

Certa feita, já com a festa voltando a se fortalecer, esteve em Bom Despacho o deputado Austragésilo de Mendonça que, encantado com a tradição, juntou-se à dona Zezé do João Araújo e a outros membros da comunidade e construíram o salão que até hoje é utilizado e se situa na rua da Olaria. Os homens contribuíram com a força física e as mulheres cuidaram dos detalhes e dos utensílios.

Padre Vicente Rodrigues, ainda segundo Luiz, quando veio para Bom Despacho, encontrou uma festa do rosário “bem capenga” e a incrementou. Passou a exigir dos dançadores um tríduo (uma espécie de novena de três dias), confissão e a partir daí tudo tomou outra proporção. A história mudou, a perseguição, antes de grandes proporções, arrefeceu. Veio a missa conga, a construção da igrejinha do Rosário e, desde então, a festa só faz crescer.

O corte Guarda de Congo Catupé Estrela do Oriente

A família de Miguel, pai do Luiz, meu ilustre narrador, residia, inicialmente, nas Grotadas, região da Chapada, perto de Moema, mudando-se após para o Buriti, Salitre, onde nasceu Miguel, e, finalmente, com Miguel ainda bem pequeno, para Bom Despacho. Instalaram-se na Vila Aurora, bairro da minha infância e onde Miguel também cresceu, conheceu, ainda criança, a esposa Vilma, com quem chegou a brincar nas ruas do bairro. Criou família e morou por ali durante toda a vida. Manteve sempre acesa a chama do louvor a Nossa Senhora e, de pé, o Corte Guarda de Congo Catupé Estrela do Oriente, deixado como herança por seu pai.

Mas o corte, ao que sabe Luiz, nem sempre esteve nas mãos da família. Num período anterior, Zé, Nina e Maria Leite, que moravam onde fica a fazenda dos Germanos, eram os donos do pequeno Corte. Zé Ingrácia, amigo comum de Alberto, pai do Miguel e de Zé Leite, convidou Alberto para ajudar a compor e ampliar o corte. Alberto de pronto aceitou o convite.

Acontece, que neste período, nos idos de 1930 e, pelos motivos já narrados acima, a festa do reinado foi paralisada e, quando retornou, eles (Zé Ingrácia e Alberto) passaram a dançar no corte do Baiano, que, segundo Luiz escutou, não os recebeu muito bem.

Então, sentados à beira de um fogão a lenha, os dois (Zé Ingrácia e Alberto) conversaram e decidiram abandonar o corte do Baiano e recuperar o pequeno corte do Zé Leite. Alberto, pra aumentar o grupo, levou toda a parentada para participar, inclusive o filho Miguel, pai de Luiz e quem, posteriormente, passaria a cuidar do corte. Fizeram e mantêm vivo até hoje um grande corte de reinado.

Com a morte de Zé Leite, o Zé Ingrácia, que era o segundo capitão, assumiu o corte. Com sua morte posterior, a tarefa ficou para o Alberto que, por anos, fez os festejos na Vila Aurora.

Alberto faleceu e Miguel e seus irmãos passaram a se responsabilizar pelo Estrela do Oriente. O corte se reuniu e ensaiou por anos na casa da Dona Geralda, na rua Capitão Jaime Gotelip. Miguel assumiu então o posto de capitão, manteve viva e repassou a tradição herdada do pai. No ano de 2.000 Miguel, já debilitado, confiou a tarefa ao filho Luiz Alberto, que hoje me encanta com suas narrativas e exerce com maestria o ofício de capitão.

Há integrantes que se comprometem com o grupo durante toda uma vida. Uns morrem, outros assumem e também há aqueles que apenas passam por um ano ou dois para louvar e pagar suas promessas. Ainda esses são parte da história do Reinado e do louvor a Nossa Senhora do Rosário.

O Reinado não é importante apenas para cada um deles que, na época dos festejos, deixam a profissão, a diversão e o lazer em segundo plano. É importante para todos nós, enquanto louvor, manifestação de cultura, tradição, unificação de um povo e celebração de uma fé.

Que qualquer manifestação cultural ou religiosa tenha sempre essa força e conotação. Que sirva para nos igualar enquanto seres humanos que somos e para nos permitir expressar nossos anseios e crenças.

Viva Nossa Senhora do Rosário, Santo Expedito e Santa Efigênia, que unem em torno deles um povo multicor que dança, reza, se alegra, oferece e espalha, história afora, sua maneira de viver.

Salve a Igrejinha do Rosário que é palco de tão linda festa. Salve todos os participantes e a mistura de tantas cores, tantas peles, e tantas fardas.

Salve a tradição. Que ela siga sendo contada, dançada e professada por Bom Despacho.

Roberta Gontijo Teixeira é bacharel em Direito, ambientalista e servidora pública federal

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