Toda comida é sagrada: não desperdice.

A falta de comida persegue a humanidade desde sempre. Dez mil anos atrás a invenção da agricultura, o pastoreio e as técnicas de conservação trouxeram algum alívio e muitas promessas. As donas de casa aprenderam a conservar os grãos em tulhas, a fazer linguiça, a desidratar a carne, a transformar o leite em queijo. Os governantes aprenderam a fazer silos para armazenar cereais na época de vacas gordas e distribuir na época de vacas magras. No entanto, passados dez mil anos de tantas invenções e descobertas, e passados mais de cinquenta anos da revolução verde, a fome ainda nos assola. Por quê?
Amostra triste

Dias atrás uma criança de 11 anos ligou para o 190 da Polícia Militar. A policial que o atendeu ficou condoída ao ouvir o pedido: o garoto contou que a família não tinha o que comer em casa. Uma guarnição se deslocou até a casa do garoto e o que encontrou lá foi o retrato da fome estampado em todos os cantos. Fazia semanas que as crianças só tinham para comer farinha e fubá com água.

Tocados pela compaixão, um grupo de policiais se cotizou, comprou algumas cestas básicas e entregou à família.

Casos assim nos envergonham e doem como um soco no estômago. Infelizmente, porém, não é caso único; é apenas uma amostra pungente da fome que em 2022 atinge 33 milhões de brasileiros.

Por quê?

Em 1991 o Brasil tinha 21 milhões de famintos. Isto representava 15% da população. Com os programas de combate à fome então desenvolvidos, em 2004 o percentual reduziu-se a 1,7%, ou 3 milhões.

Contudo, em 2018 a tendência de inverteu. Naquele ano 10,3 milhões de brasileiros voltaram a passar fome. Isto significa 5% da população. Em 2022 o número saltou para 33,1 milhões, 16% da população. Portanto, nos últimos 4 anos regredimos à situação de miséria de 30 anos atrás.

Por que um país rico em terras e campeão mundial na produção de grãos, frutas, laticínios e carnes convive com 33,1 milhões de pessoas com fome?

Produção de alimentos no Brasil

Sessenta anos atrás o Brasil começou sua revolução verde. Nos últimos 50 anos, a produção de grãos saltou de 38 milhões para 280 milhões de toneladas por ano. No mesmo período nossa população cresceu de 106 milhões para 214 milhões de habitantes. Portanto, enquanto a produção de grãos cresceu à razão média de 4,0% ao ano, a população cresceu à razão média de 1,4% ao ano.

Em outras palavras, enquanto em 1977 o Brasil produzia um quilo de grãos por dia para cada brasileiro, em 2022 a produção foi de 3,6 quilos de grãos por dia para cada brasileiro.

Mas o Brasil não melhorou só na produção de grãos. Crescemos também na produção de ovos (56,2 bilhões de ovos, ou 3,9 milhões de toneladas), 34 bilhões de litros de leite, 11 milhões de toneladas de carne bovina, 14,5 milhões de toneladas de carne de frango, 4,85 milhões de toneladas de carne suína, 1.250 toneladas de carne de peixe, 45 milhões de toneladas de frutas, mais 22 milhões de toneladas de mandioca.

Considerando só estes produtos, estamos produzindo 1,7 bilhão de toneladas de alimentos por ano. Isto dá 22 quilos de alimento por dia, para cada brasileiro.

Considerando que uma pessoa pode se alimentar muito bem com menos de um quilo de alimento por dia, constata-se que a produção de alimentos do Brasil dá para alimentar mais de 20 vezes sua população. Na verdade, dá para alimentar a metade da população do Planeta, ou 4 bilhões de pessoas.

Se assim é, o que explicar termos 33 milhões de famintos e 60 milhões de pessoas em estado de insegurança alimentar? Por que tanta comida não chega ao estômago dos brasileiros?

Exportação

Boa parte dos alimentos vai para fora. O Brasil exporta boi, frango, porco, soja, milho, mandioca, frutas, ovos. A comida vai, o dólar vem.

As exportações ajudam a explicar o aumento do preço dos alimentos e até a falta dos produtos de qualidade maior, mas não é suficiente para explicar a fome. O que exportamos é uma fração do que produzimos. Tomando como exemplo as carnes, que são produtos mais nobres, exportamos 23% da carne suína, 15% da carne bovina e 31% da carne de frango. Isto ainda deixa muita carne para consumo dos brasileiros. O mesmo acontece com os grãos, ovos, laticínios, mandioca.

Isto mostra o gigantesco ganho de eficiência na agropecuária.

Perda no transporte

Depois da exportação, o segundo destino é o lixo. Segundo a ONU, o Brasil perde 14% dos alimentos entre a colheita e a chegada ao supermercado. São 238 milhões de toneladas, ou três quilos por dia, por brasileiro. Suficiente par alimentar três vezes a nossa população.

Esta perda é devida à falta de armazéns, às péssimas rodovias, à falta de ferrovias e de portos. Portanto, está ligada à ineficiência, falta de planejamento e falta de investimento do governo federal.

Maus hábitos

Segundo a FAO/ONU, outros 17% dos alimentos são perdidos nas residências, restaurantes e supermercados. Parte disto se deve a maus hábitos na cozinha. O Brasileiro desaprendeu como usar integralmente os alimentos. Jogamos fora cascas, sementes, folhas e raízes comestíveis e cortamos e preparamos os alimentos com excesso de sobras. Boa parte da comida vai para o lixo porque não sabemos mais como prepará-los de forme econômica.

Também deseducamos nossos filhos. Eles aprendem a colocar muito no prato e jogar fora as sobras. Mais comida para o lixo.

É o desperdício decorrente de maus hábitos.

Medo e má orientação

O terceiro motivo que leva tanta comida ao lixo é o medo irracional e injustificado do vencimento dos alimentos. Todos os dias, mães zelosas, preocupadas com a saúde da família, vasculham suas despensas e geladeiras em busca de alimentos vencidos. O mesmo fazem empregados nas escolas, hospitais, restaurantes, asilos, supermercados. Pressionados, vistoriam depósitos, gôndolas, geladeiras e balcões em busca de alimentos vencidos ou a vencer. Quando encontram, o destino é o lixo.

Isto é um erro. O vencimento do alimento não indica que ele é impróprio para o consumo. Ela indica apenas que, na opinião do fabricante (e só dele!) você deve jogar o alimento fora e comprar mais. Na maioria dos casos o fabricante nem deveria colocar data de vencimento, mas coloca porque isto interessa ao negócio dele.

A data de vencimento dos alimentos não é fixada por nenhum método científico; não é regulada por lei ou norma administrativa nacional ou internacional. Com raras exceções, ela não se destina a indicar a salubridade do alimento, sua segurança para o consumidor. Ela se destina apenas a forçar o descarte precoce e desnecessário do alimento.

No entanto, a crença de que o alimento se torna perigoso e impróprio para o consumo após o vencimento cria medo nas pessoas. Por causa deste medo, elas jogam fora o que é perfeitamente seguro para o consumo. É por isto que alguns fabricantes colocam datas até em álcool, sal, verduras, frutas e produtos de panificação que estão dispensados de data de validade.

Terrorismo do PROCON e do Ministério Público

O governo nunca se preocupou em esclarecer para a população qual o significado da data de vencimento. O código do consumidor, criado sob influência da indústria alimentícia e farmacêutica, equipara produtos com data vencida a produtos deteriorados, adulterados, perigosos, nocivos à saúde. Isto revela a ignorância sesquipedálica dos nossos legisladores quanto ao tema.

Escudados nesta lei infeliz (neste aspecto), Procons e Ministério Público se aliaram aos fabricantes de alimentos industrializados e criaram uma atmosfera de terror nos supermercados, restaurantes, escolas, hospitais. Aplicam pesadas multas e ameaçam com processo qualquer escorregadela que permita deixar na gôndola um produto com data de vencimento ultrapassada. Este terror se estendeu até nossas casas. São os Procons e o Ministério trabalhando para forçar o descarte de alimentos ainda próprios para o consumo.

Mas você, dona de casa, não precisa se submeter a este absurdo. Jogue fora apenas comida estragada, que é bem diferente de alimento com data vencida. Siga a regra da FAO/ONU: se o alimento passa no teste dos seus sentidos (olfato, tato, visão e paladar), ele está bom para o consumo.

Por exemplo, comidas congeladas continuam seguras até anos depois da data de vencimento. Elas podem mudar a aparência e a textura, podem até perder parte dos seus nutrientes, mas seu consumo não se torna perigoso para sua família. O mesmo se aplica aos grãos, farinhas, sal, açúcar, mel: guardados na despensa, duram quase infinitamente, exceto se atacados por ratos, gatos e coisas que o valham.

O que os seus sentidos não lhe permitem identificar são os alimentos contaminados com agrotóxicos e produtos venenosos que a indústria está autorizada a usar: corantes, edulcorantes, conservantes, flavorizantes, realçadores de sabor. Estes adoecem e matam, mas são permitidos e não podem ser detectados nem pela data de validade nem por suas qualidades organolépticas. Contra estes também pouco ou nada fazem os Procons e o Ministério Público.

O consumidor é vítima

Em resumo, data de vencimento não protege a saúde do consumidor e ainda opera contra suas finanças. Uma das formas de combater a fome é tornar o alimento mais disponível e mais barato. Eliminar o desperdício ajuda muito nestas duas coisas. Mas, para eliminar o desperdício, temos que afastar a cortina da ignorância que impede os brasileiros de enxergarem o sentido correto da data de validade em alimentos.

Digo brasileiros, porque em muitos países os governos têm papel ativo em mostrar ao consumidor que o vencimento não é motivo para descarte. Aliás, alguns deles — inclusive nos Estados Unidos, o país que mais desperdiça no mundo — não só é permitido vender produtos vencidos, como existem supermercados especializados na venda de produtos vencidos a preços mais baixos.

Entre nós, todos os dias quem pode comprar compra e joga fora 15 ou 20% dos alimentos que compram e os supermercados são obrigados a jogar fora milhares de toneladas de alimentos vencidos, mas perfeitos para o consumo.

Enquanto isto, milhares de famílias perambulam pelas ruas vasculhando latas de lixo e disputam com ratos, gatos e cachorros qualquer coisa que encontrem para saciar a fome desesperadora.

Tudo isto leva ao que vemos hoje: 33,1 milhões de brasileiros passando fome e mais 30 milhões sob o risco de seguirem o mesmo caminho nos próximos meses.

Toda comida é sagrada e não pode ser desperdiçada. Menos ainda por causa de uma data arbitrária que o fabricante carimba na embalagem. A salubridade e adequação do alimento não pode ser aferida por esta data.

A fome não é castigo de uma natureza madrasta, é consequência da ignorância de muitos, da indiferença de alguns e da má gestão governamental. É mais do que hora de todas as famílias terem comida à mesa sem que uma criança tenha para ligar para a polícia informando que está com fome.

Nota: Embora o Codex Alimentarius indique o significado de data de validade, ele não define como ela é estabelecida. Ademais, dispensa desta data, entre outros, qualquer produto cuja deterioração possa ser percebida por um dos nossos sentidos (consultar <https://tinyurl.com/data-validade>). O conhecimento destes fatos e regras economizaria milhões de toneladas de alimentos por dia e poderia alimentar abundantemente todos os nossos famintos. (FOTO desta página: Imagem ilustrativa / dreamstime.com)

Fernando Cabral

Fernando Cabral é licenciado em Ciências Biológicas, advogado, auditor federal e ex-prefeito de Bom Despacho

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