Duas cartas da minha mãe para esta coluna
Reproduzo a seguir duas cartas de mamãe, a escritora Maria Celeste, para essa minha coluna.
Ilce e Celeste
Uma amizade nascida nos recreios do Grupo Escolar Coronel Praxedes. Duas meninas tímidas e, sem combinação prévia, se encontravam e sacavam o seu brinquedo de sempre: cinco pedrinhas redondas e cristalinas que, lançadas para cima e apanhadas no ar, exercitavam a sinfonia fina dos dedos. Um jogo, para nós, sem nome. “Cinco Marias” talvez, mas dizíamos apenas “jogar pedrinhas”. Ninguém vencia, ninguém pedia. Finalizado o recreio, cada uma recolhia as pedras ao bolso da saia pregueada de uniforme. Não havia despedida.
Foi assim a vida inteira: uma amizade sem disputas, serena, silenciosa. Uma pepita de ouro que a gente sabia guardada em segurança e, por ela, zelava com carinho.
Sabedoria que adquirimos em crianças, confirmada na dança da vida. Quem hoje perde, ganhará adiante; quem ganha agora, pode perder e seguir ganhar e perder faz parte do jogo. Mais tarde a ex-presidente Dilma iria verbalizar essa ideia com humor.
Em nossa caminhada, Ilce encontrou Idmar e eu encontrei o Lúcio. Ilce conservou todas as cartinhas que trocou com Idmar, mantendo vivo o sentimento e retratando os anos dourados suas dores e delícias. Essas cartas, simples e autênticas, nos ensinam a viver com coragem e otimismo. Valeu, Ilce! Você é a pedra mais lapidada, a mais brilhante do nosso jogo! (Celeste, 25/12/2021)
Beth
Minha irmã Beth nasceu em uma quarta-feira, no longínquo ano de 1946, século passado. Antes, quatro tentativas de ser mãe haviam terminado para Irene em abortos e/ou filhos natimortos. Quando D. Alma acolheu em suas mãos a criança arroxeada, com o cordão umbilical enrolado ao pescoço, fez-se um grande silêncio no quarto. Uma pergunta angustiante quase balbuciada, pairou no silêncio: “morta”? A parteira não respondeu. Massageava a bebê, dava-lhe tapinhas nas nádegas, até que o primeiro vagido soou feito aleluia.
O pai da criança estava eufórico: tinha agora uma filha com nome de rainha; o país saía enfim da ditadura Vargas, uma nova Constituição dava novo alento ao povo, por expressar valores liberalistas e garantir princípios democráticos, embora ainda conservadora em alguns aspectos. O voto dos analfabetos continuava proibido. Eurico Gaspar Dutra era o novo presidente eleito. A segunda guerra acabara, mas o colonialismo persistia; assim também persistiam o ranço escravocrata e a rígida estratificação social.
Beth cresceu curiosa e aventureira. Em um tempo em que se jogavam as cinzas quentes do fogão e lenha no quintal e as crianças andavam descalços, Beth queimou os pezinhos. Conseguia andar nos beirais dos muros, feito lagartixa aderida, colada. Não raro, escalavrava os joelhos ao voltar ao chão. Belo dia, escalou um armário, que veio abaixo, soterrando-a. Não havia galho alto de árvore em que não subisse. Esborrachar-se ao chão era natural, porque do chão ninguém passa.
Novos irmãos nasciam a cada ano. As brincadeiras à noite na rua ganhavam mais e mais adeptos. Os olhos da menina verdejavam a cada conquista: roubar uma bandeira no jogo, vencer a corrida de quarteirão, contar a mais arrepiante estória de terror. Fez-se adolescente e questionou tudo, como sempre há de ser. Encheu o próprio quarto com pôsteres de Lennon, Elvis, Roberto Carlos e Ronnie Von, flâmulas de países e eventos. Pintou os verdes olhos de crayon negro, para desespero de D. Irene. Organizou horas dançantes, agora com o apoio da mãe. Chorou a morte de Kennedy, marchou junto com os estudantes em protesto pelo preço dos bilhetes no Cine Regina, passou das matinês de domingo aos filmes noturnos, cultuando atores. Anotava as letras das músicas em cadernos de capa de arame. O Clube de Esquina sempre esteve lá.
Indo para B.H. em busca de trabalho, continuou com as antigas amizades e acrescentou novas. Era solidária, prestativa e assim alimentava sempre novas rodas de amigos.
No amor foi sempre rigorosa consigo mesma. Não se dava à leveza dos relacionamentos sem compromisso. Feliz ou infelizmente, terminou só. Encontrou a contradição da música: “quem eu quero não me quer / quem me quer mandei embora”.
A doença fatal surgiu-lhe aos 45 anos incompletos. Levou-a um ano e meio depois. Quem a conheceu, não a esquecerá. Beth, doce lembrança (Celeste, 25/12/2021)
Foto: Celeste com a neta Isa