Semana Santa em BD, rito de reconstrução
A Semana Santa é uma das memórias mais lindas que tenho da minha infância em Bom Despacho. Nunca vi uma programação tão intensa quanto o que acontecia nas nossas igrejas e ruas. Eram várias cerimônias religiosas que nos abraçavam, que atraíam e acolhiam a todos. Era uma semana de nos encontrarmos algumas vezes, de rezarmos sem reservas pelas ruas da cidade, de ouvirmos as batidas das matracas e sentirmos o aroma de incenso.
No domingo, a Procissão de Ramos coloria de verde e perfumava a Matriz. É estranho escrever “perfumava”, porque acho que aqueles ramos não eram naturalmente perfumados. Mas a minha memória junta o verde escuro dos ramos a um perfume verde por toda a igreja. A entrada gloriosa de Jesus em Jerusalém era celebrada com alegria e certa pompa em BD. Era a primeira procissão da semana e, como acontecia junto com as missas dominicais, contava com grande número de participantes, embora diluídos ao longo do dia.
Na 2ª feira, ocorria a Procissão de Nosso Senhor dos Passos. Ela ia da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Despacho até a Igreja do Rosário. A cerimônia relembrava o sofrimento de Jesus carregando sua cruz até o calvário, em um primeiro momento de dor e superação na Via Sacra. A gente via um bom número de pessoas e amigos, mas era um movimento ainda tímido pelo que estava por vir.
Na 3ª feira, ocorria a Procissão de Nossa Senhora das Dores. Essa ia da Igreja Matriz até a Capela da Santa Casa e relembrava a angústia e sofrimento de Maria, mãe de Jesus, após saber da prisão do filho e do seu encaminhamento para a crucificação. Havia mais ou menos a mesma quantidade de pessoas da procissão de 2ª feira, diferenciando-se um pouco o grupo de pessoas em função da proximidade com a igreja para onde ela se dirigia.
Na 4ª feira, ocorria a Procissão do Encontro – que na verdade era uma composição de duas procissões, fazendo os trajetos inversos daquelas realizadas na 2ª e 3ª feira. Os participantes se dividiam em dois grupos, um saindo da Igreja do Rosário e outro da Capela da Santa Casa, ambos em direção à Matriz. Se não me trai a memória, essa procissão inclusive separou homens e mulheres em alguns anos, com os homens saindo do Rosário, acompanhando a imagem do Senhor dos Passos, e as mulheres da Santa Casa, acompanhando a imagem de Nossa Senhora das Dores. Essas procissões davam sequência às caminhadas anteriores, tendo seu clímax no encontro entre os dois grupos na Matriz, simbolizando o encontro de Jesus com Maria no caminho de seu calvário. A participação crescia com a confluência das duas procissões e era perceptível no ar uma angústia crescente.
Na 5ª feira, ocorria o Lava Pés, cerimônia que retroagia um pouco na cronologia da Paixão de Cristo para trazer um momento anterior à sua prisão, calvário e crucificação. Naquela iluminada e cheia de significados Última Ceia, Jesus lavou os pés de seus discípulos, em uma demonstração de humildade e disponibilidade em servir ao próximo. Exemplo que trazia e sempre traz reflexões, especialmente em um mundo como o nosso atual, de tanta espetacularização e pouca disponibilidade para o servir.
A 6ª feira da Paixão era o dia mais triste do ano. Lembro-me de um dia cinza com uma noite de orações entrecortadas por um silêncio profundo e as batidas das matracas. Não sei dizer em números, mas a impressão que eu tinha era de haver mais gente na Procissão do Enterro do que em toda Bom Despacho. Eram certamente dezenas de milhares de pessoas, que saíam em um cortejo fúnebre da Praça da Matriz e lotavam quilômetros de ruas da cidade. Lembro-me ainda das pessoas que vendiam velas para usarmos na procissão, de cortar uns pedaços de papelão com um furo no meio para proteger as mãos da cera derretida, do cuidado para não deixar a vela apagar ou queimar o cabelo de alguém e até mesmo de vender velas em alguns anos. Lembro que caminhávamos em família, que costumávamos rezar de um a três terços ao longo da procissão, que eu costumava revisar toda minha vida naquela hora e meia de caminhada. E voltava em silêncio para casa.
O sábado era dia de vigília, de espera pela gloriosa ressurreição de Jesus Cristo, celebrada no Domingo de Páscoa. Mas, sendo honesto, devo confessar que iniciávamos as celebrações ainda no sábado. À noite, ocorria o Baile de Aleluia, que era uma das festas mais alegres na cidade, uma festa de efusiva celebração.
O Domingo de Páscoa era um dia claro, leve, de missa pela manhã, almoço em família, sorrisos largos, mentes e corações revitalizados! Era um dia de glória, paz de espírito, esperança e luz.
A Semana Santa tinha, pela construção e sequenciamento de suas cerimônias, o condão de nos levar por um caminho de reconstrução, de revitalização. Saíamos mais fortes e inspirados, sempre melhores do que entrávamos.
Uma Santa Semana a todos!
Foto: Procissão no centro de Bom Despacho, esquina da Rua Coronel Tininho. Foto publicada na página Bar do Tonhão
Aiii, que lindo texto, Paulo Henrique Alves Araújo!… Quanta saudade! Parabéns por retratar tão bem os doces momentos de uma cidade do interior. Linda a imagem “perfume verde dos ramos” e “a sensação de existir mais gente na procissão do enterro que em toda Bom Despacho.”. Bonito demais.