Nossas mães são seres especiais

Costuma-se dizer que somente damos valor às pessoas quando elas morrem. Nem sempre. A maioria dá valor desde sempre. Mas para alguns talvez nos falte jeito para demonstrarmos nosso apreço pela pessoa que admiramos enquanto ela está viva. Para outros talvez falte oportunidade. Mas, em ambos os casos, nos nossos corações e mentes, temos uma lista preciosa de pessoas que admiramos, respeitamos, amamos. Depois que elas morrem, suas lembranças se reavivam em nossas memórias e os exemplos que nos deixaram ganham mais força. Foi o que aconteceu comigo depois que minha mãe nos deixou.

Chegou mais um dia das mães. Para mim, desde o ano passado esta data se tornou mais especial do que já era. Foi o último dia que minha mãe viveu. Na manhã seguinte ao dia das mães de 2020 ela nos deixou para sempre.

No dia anterior, 10 de maio, nós comemoramos o dia das mães, mas de uma forma diferente do que sempre fizéramos. A covid-19 estava se alastrando pelo Brasil e os idosos como minha mãe eram particularmente vulneráveis. Por isto, aquele dia das mães foi tão diferente. E foi o último com ela ainda viva.

Minha mãe teve doze filhos. Uma escadinha de meninos, pois por doze anos os nascimentos se sucederam ano a ano. Houve apenas um ano em que vieram dois de uma só vez. Gêmeos. Com isto, enquanto os mais velhos já estavam na adolescência, os mais novos ainda estavam nos cueiros.

Eu, com 4 meses de idade, no colo de minha mãe, ainda morando na roça; à esquerda minha irmã Diva

Com doze filhos, seus amigos e amigas, os agregados, mais primos e primas, é fácil ver como a casa da minha mãe era uma algazarra permanente. Ter a casa cheia com vinte, trinta crianças e adolescentes era um acontecimento comum para minha mãe. Felizmente, o que não lhe faltava era energia. Ela era uma locomotiva, uma usina ambulante. Tampouco lhe faltava paciência para cuidar dos dela e das outras.

Sua faina diária começava muito antes do amanhecer. Como se tivesse dez braços e dez mãos, de uma só vez ela acendia o fogo, preparava o café e a merenda dos que iam para a escola, fazia as mamadeiras dos que ainda estavam no berço, varria a casa e já preparava a roupa para lavar e passar.

Nos primeiros tempos, o fogão era a lenha e o ferro era de brasas. A água de beber era buscada na lata, lá na Biquinha. Muitas vezes a de lavar também, porque a água encanada de Bom Despacho não era boa e costumava faltar. Vinha da represa dos Bertos. Não servia para beber, porque era contaminada; não servia para lavar roupa branca, porque era muito barrenta e manchava tudo.

Para minha mãe não tinha tempo difícil. Com a mesma disposição que ela nos arrumava para a escola ela também costurava, bordava, cuidava das galinhas, fazia linguiça, fazia a comida e arrumava a cozinha.

Quanto eu nasci nós ainda morávamos na roça. No entanto, quando minha irmã mais velha se aproximou da idade escolar, viemos para a cidade. Minha mãe não abria mão de seus filhos irem para uma boa escola.

Minha mãe acompanha o Padre João entrando na Igreja Matriz por volta do ano de 1960

Na cidade muita coisa mudou. Em casa a lamparina foi substituída pela luz elétrica. As ruas principais de Bom Despacho tinham iluminação. Telefone a cidade ainda não tinha. Televisão também não, mas rádio, sim.

O rádio tinha um lugar de destaque nas casas. Ele ficava em cima do melhor móvel da sala de visitas. Se a casa tivesse copa – um luxo raríssimo – era ali que sua majestade, o rádio, ficava.

Alguns programas minha mãe não perdia. Quando o dia estava terminando ela nos levava para a casa da Dindinha, a vó Diva. Descíamos a Rua da Biquinha em penca. Eram cinco, seis, sete meninos e meninas fazendo arte em volta da mãe.

Seis horas era caluda. Começara “As Aventuras do Anjo”, oferecimento Glostora. Depois vinha “Jerônimo, o Herói do Sertão”. Finalmente, a novela. O dramalhão O Direito de Nascer foi um dos sucessos da época. Minha avó e minha mãe ficavam de ouvidos atentos; nós tínhamos que parar com a bagunça.

Também já não era sem tempo. Enquanto as duas se emocionavam com Albertinho Limonta e os dramas da radionovela, cansaço vencia os filhos. Uns se esparramavam pelo chão, outros deitavam no banco atrás da mesa. Os mais pequenos dormiam nos braços da mãe. Antes de a novela acabar já estavam todos dormindo.

Quando entrava “A Voz do Brasil” (que na época ainda se chamava “Hora do Brasil”), era o momento de recolher. Mas, algumas vezes o horário se esticava até início do Repórter Esso, a “Testemunha Ocular da História”.

Lembro-me destas coisas com carinho e com o coração exaltado. Mas há uma noite que guardo de forma especial. Com os olhos da memória vejo minha mãe saindo da casa da minha avó. Como sempre fazia, ela nos chamava e nós íamos como sonâmbulos, agarrados na saia dela. Ninguém acordava. Era como se não existisse a caminhada do banco da casa da minha avó até a cama da nossa casa.

Mas aquela noite foi especial. Mesmo criança, mesmo sonolento, eu vi e guardei cena para sempre.

A luz do poste – que já não era tão boa – havia se apagado. Não sei se estava queimada ou se faltara energia. Naquela época, no inverno, era comum faltar energia. A noite estava fria. Devia ser maio, talvez junho. O céu estava estrelado e a lua iluminava a rua.

Como de costume, minha mãe nos chamou. Fomos nos levantando como os sonâmbulos de todas as noites. Cada um pegou um pedaço da saia e a seguiu dormindo. Os dois mais novinhos iam nos braços, debruçados sobre os ombros dela.

Gravei aquele momento mágico. Aquela mulher forte, destemida, batalhadora, que depois de um dia intenso, ainda tinha energia para carregar dois filhos nos braços e arrastar três rua acima.

Sob o frio da noite e sob a luz da lua, minha mãe nos levou para casa e nos colocou na cama.

Esta imagem que guardei de forma tão profunda, tão indelével, simboliza a força que minha mãe tinha. Depois de um dia de labuta que havia começado antes de o sol raiar, ela encontrava forças para visitar a mãe e depois voltar para a casa arrastando três filhos agarrados à sua saia e levando mais dois nos braços.

Minha mãe com familiares na casa dos meus avós, por volta de 1970

Mas, muito mais do que a força física, minha mãe tinha de força moral; tinha força espiritual. É nisto que penso neste dia das mães, quando completa um ano de sua morte.

Quando morreu, já com quase 93 anos, seu corpo era frágil, miúdo. Não fazia homenagem à força de seus anos produtivos. Mas sua lucidez, sua força espiritual continuavam invencíveis. Sua vontade de cuidar da ninhada, dos seus descendentes e dos seus amigos continuava inabalada.

Mas, quis o destino que ela passasse o último dia das mães de forma diferente. A covid-19 obrigou. Naquele seu último dia de vida, dia das mães, ela não recebeu a visita e não recebeu os abraços dos filhos, netos, bisnetos, amigos. Mas recebeu uma homenagem muito especial: um vídeo com uma mensagem de amor e reconhecimento ecoada por todos os seus filhos e filhas, netos, bisnetos, noras e genros. Todos.

No dia das mães, 10 de maio de 2020, ela viu e reviu aquele vídeo quantas vezes quis.

Na manhã seguinte, dia 11 de maio de 2020 ela se deitou dizendo que ia descansar um pouco. Sem dor, sem sofrimento, sem angústias, fechou os olhos, descansou e nos deixou para sempre.

Mas ela continua vivendo nas nossas gratas lembranças.

Neste 9 de maio, ao homenagear a memória de minha mãe, quero homenagear todas as mães que se desdobram com o olhar voltado para um só objetivo: com zelo e carinho infinitos, garantir que seus filhos sejam felizes e tenham vida plena.

São nossas mães. Parabéns a todas elas.

Fernando Cabral

Fernando Cabral é licenciado em Ciências Biológicas, advogado, auditor federal e ex-prefeito de Bom Despacho

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