O jeito próprio da língua bom-despachense

Cada povo fala de um jeito que é só seu, tem uma musicalidade própria na maneira de falar. Pessoas que chegam a São Paulo costumam estranhar o famoso “orra, meu”, bem paulistano, que o apresentador Fausto Silva repete em seu programa dominical.

Também falamos a letra “d” com um “j” anexo. Então, “dia” vira “djia”, por exemplo. Meu sogro costuma dizer que alongamos o “mente” das palavras, como “finalmeeennnte” ou algo assim.

O paulistano é conhecido no Brasil todo por dizer uma frase totalmente errada: “dois pastel e um chopps”. Apesar de nunca ter ouvido alguém dizer isso, acredito que tenha uma ponta de verdade, pois o paulistano médio ignora o “s” dos plurais.

Eu continuo tendo dificuldades em entender tudo que é dito em Bom Despacho. Sempre que vamos, eu e minha namorada bom-despachense, ao restaurante do Fabinho, amigo do grupo Correbom – Grupo Correndo Por Aí de Bom Despacho, eu tento entender o que os meninos que atendem às mesas conversam entre si. Quase nunca entendo o que falam. Minha namorada, então, vai traduzindo as palavras. É muito divertido, pois as palavras são quase sempre as mesmas que uso, mas a maneira de dizê-las é muito diferente. O Breno, rapaz que faz os churrasquinhos do Fabinho, é o que menos entendo. Mas, nunca desisto de tentar entender a musicalidade de sua fala.

Nas últimas semanas um “símbolo” da conversação bom-despachense, para a qual eu nunca havia dado importância, começou a cruzar meu caminho. É o “viu” de resposta.

A primeira vez que percebi o uso desse “viu” foi em um diálogo com a Ana Julya, a Juju, neta de uma colaboradora de minha namorada bom-despachense. Eu estava falando um “tchau” para a Juju e disse algo como “não esqueça de avisar sua avó sobre tal coisa, viu?”. Ela me respondeu: “viu” e foi embora. Ainda gritei para ela, que já ia longe na rua: “quem viu?”.

Fiquei com aquilo na cabeça. Mais tarde, quando minha namorada já havia chegado em casa, comentei com ela a resposta “viu” da Juju. Minha namorada não estranhou o “viu” e ainda perguntou qual era o ponto de meu comentário. “Como assim?”, me indignei. “A Juju respondeu ‘viu’ e quero saber quem viu”, complementei achando que havia encerrado o assunto. “A Ana Julya”, respondeu minha namorada, já meio impaciente. “Se fosse a Juju quem viu, ela teria respondido “vi” e não “viu”, já que a conjugação desse verbo é “eu vi”, tu vistes”, ele/ela viu”, arrematei professoralmente.

Passado um ou dois dias, eu e minha namorada bom-despachense fomos ao Nú Café e pedi um café para a Ana, a atendente. “Quero o expresso, viu?”. “Viu”, respondeu e saiu para preparar a bebida. Olhei para minha namorada e apontando para a garota perguntei: “você ouviu o que ela respondeu? Ela respondeu igual a Juju. Ela retornou um “viu” para minha pergunta”, disse quase aos berros, como quem encontra um objeto perdido há meses e procurando do afinco. “Entendi”, respondeu calmamente minha namorada. Explicou-me que as pessoas de Bom Despacho respondem “viu” quando alguém termina uma frase com um “viu”. “Por exemplo: você disse “quero um expresso, viu?” e ela respondeu com o mesmo “viu”. Qual é o problema?”.

Fiquei uns minutos quieto, pensando, tentando encontrar uma explicação para meu espanto, já que para minha namorada não havia nada para se preocupar.

Quando a Ana voltou com o café, comentei com ela sobre meu espanto. Ela riu e disse que nunca havia notado que respondia dessa maneira.

Voltamos para casa, eu e minha namorada, discutindo sobre essa forma de falar. Eu insistia no ponto da incorreção gramatical. “Por que as pessoas não respondem “vi” ou “entendi” ou “OK”, que fariam mais sentido. Responder “viu” é muito estranho, pois “eu viu” não existe em nossa língua”, expliquei. “É só uma forma de responder, que acabou virando algo comum aqui. Um ouve o outro dizer e acaba copiando e isso se espalhou na cidade inteira. Ninguém mais pensa sobre isso, só você”.

Levei o caso para discutir com meu sogro, que é uma referência para dúvidas da língua portuguesa em Bom Despacho.

Expus o problema para ele, que não entendeu qual era o problema logo de cara. Repeti toda a explicação sobre o erro gramatical. Ele riu e disse que não havia reparado nisso. “Do ponto de vista da língua está errado, mas virou uma expressão que perdeu o laço com a gramática. Hoje, é só um jeito de não deixar a outra pessoa sem resposta”, explicou.

Meu sogro me contou, então, uma história similar a esta que eu acabara de contar a ele. Disse que quando dava aulas, percebeu que sempre que perguntava aos alunos algo como “vocês entenderam?”, muitos alunos respondiam “entenderam”. Quando ouvi isso, comentei que era o mesmo erro gramatical, só que no plural. Ele concordou.

Cada povo tem suas idiossincrasias, suas maneiras de lidar com as coisas, inclusive com a língua. Ainda não consigo responder “viu”, quando alguém me diz “tal coisa, viu?”, mas já entendo e aceito melhor essa maneira bom-despachense de ser.

E viva as diferenças, viu?

Alexandre Magalhães

Alexandre Sanches Magalhães é empresário, consultor e professor de marketing, mestre e doutor pela USP e apaixonado por SP e BD

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