A Covid, a Ciência e os Charlatões

Desde sempre a medicina foi território dos xamãs, curandeiros e charlatões. Os xamãs operavam com base em crenças religiosas; os curandeiros com base em constatações empíricas; os charlatões, com base no desejo de ganhar dinheiro e prestígio às custas da saúde dos crédulos e dos desesperados. A luz da ciência afasta xamãs e curandeiros, mas os charlatões sobrevivem a despeito dela. Eles aprenderam a sobreviver manipulando a ignorância, o medo e o sofrimento alheio. A chegada da covid-19 revigorou o charlatanismo no Brasil.

Acredita-se que Hipócrates, o pai da medicina, tenha escrito mais de cem livros. Entre os seus ensinamentos está a lição de que a primeira obrigação do médico é não piorar a situação do paciente. Outro ensinamento valioso está nesta frase: a vida é breve, a arte é duradoura, a ocasião fugidia, a experiência enganosa e o julgamento difícil.

Estas constatações no ajudam a entender por que chegamos onde chegamos neste início de abril: 13.279.850 casos confirmados de covid, 345.025 mortos, mais de 4 mil mortes por dia e agora caminhando para 5 mil.

A vida é breve. Mas pode ficar mais breve se a covid-19 continuar sendo tratada com drogas receitadas por charlatões.

 

Enfrentamento da doença

No longo prazo nossa esperança está na vacinação em massa. No entanto, não temos vacina em quantidade suficiente para que isto aconteça rapidamente. Apesar dos anúncios otimistas do Governo Federal, não temos motivos para acreditar que os brasileiros estarão vacinados até o final de 2021. Se tudo der certo, e com sorte, talvez até o final de 2022. Quanto a isto, não convém cultivar ilusões.

Sendo esta a situação, resta a cada um de nós fazer aquilo que está a nosso alcance para evitar o espalhamento da doença e as mortes que ela traz: a) manter o distanciamento social; b) usar máscara; c) fazer rigorosa e repetida higiene pessoal, especialmente das mãos e rosto; d) entrar em isolamento ao primeiro sinal da doença.

Embora estes sejam procedimentos simples, vemos que os brasileiros têm relutado em adotá-los. Para complicar, muitos brasileiros estão prestando atenção ao que dizem os charlatões e fazendo ouvidos de mercador ao que nos dizem os cientistas.

 

A experiência é enganosa

Dar ouvidos aos charlatões é fácil porque o que eles dizem é simples e a promessa é atraente. Dizem eles: “tome um comprimido de ivermectina a cada 8 horas e você não pegará covid-19.”

Simples, fácil de entender, fácil de seguir. O problema é que não funciona. Pior: pode matar.

Mas as pessoas não acreditam nos charlatões só porque é simples. Eles acreditam também porque – como disse Hipócrates – a experiência é enganosa e o julgamento difícil.

Quando quebramos um osso, sentimos dor. Esta sensação nos ensina que cair da árvore, ser atropelado ou tomar uma paulada nas costelas são coisas que quebram ossos. Por causa da dor imediata identificamos a causa e aprendemos evitá-la no futuro.

Com a covid é diferente. Ela nos chega por um vírus imperceptível. Quando chega ele não causa dor nem desconforto. Não faz sangrar, não dá febre. Estas coisas desagradáveis só aparecem dias depois. Por isto a relação de causa e efeito não se estabelece de forma intuitiva e imediata como acontece quando há dor ou sangramento.

Seja como for, uma vez no nosso corpo, nós nos tornamos transmissores do vírus. Vamos levá-lo para nossos parentes, vizinhos, amigos, colegas de trabalho.

A covid tem um agravante: um número elevado de pessoas não sente nada mesmo depois. Ou seja, pega e vence a doença sem nem saber que a pegou. Assim sendo, estas pessoas saem espalhando a doença sem nem saberem que a carregam.

Há também o caso das pessoas que pegam a doença, têm sintomas leves e logo se curam espontaneamente. Elas dão a impressão de que a doença é apenas uma ”gripezinha”, um mal-estar passageiro. Só que não é.

Oitenta ou noventa por cento da população sofre pouco ou nada com a doença. A maioria terá cura espontânea. Isto abre muito espaço para os charlatões. Afinal, não importa o que eles receitem, 80% ou 90% dos pacientes se curará (ou nem pegará a doença). Para tais pessoas, ivermectina, água com açúcar, água da bica, fel de urubu, casca de ipê, escama de cobra, asa de morcego, todos têm o mesmo efeito. É o paraíso dos charlatões, porque qualquer garrafada parece funcionar para estas pessoas.

Onde os medicamentos dos charlatões falham é exatamente onde eles teriam que funcionar: são aqueles 10% da população que sofrem com a doença, não têm cura espontânea e muitas vezes morrem (2,5% dos diagnosticados).

Mas alguns remédios dos charlatões não se limitam a falhar. Além de falhar, eles destroem o fígado e os rins dos pacientes. O SUS já registrou enormidade de problemas de fígado e de rins em pessoas que tomaram ivermectina ou hidroxicloroquina.

 

Protocolos médicos

Protocolos são regras que os médicos devem seguir para tratar doentes. Eles são formados a partir da experiência coletiva. Conforme mais informações são juntadas, os protocolos são atualizados. Protocolo não garante que todos se salvarão, mas garante a melhor chance de cura para todos.

Como a experiência é enganosa, os cientistas avaliam a eficácia e os riscos dos medicamentos usando um protocolo chamado duplo cego. Com ele os tratamentos com ivermectina e com hidroxicloroquina já foram várias vezes comparados com o tratamento convencional.

Aqui vai um exemplo simplificado de como funciona uma comparação destas.

Para começar, os pacientes que entram no hospital são sorteados para receber o medicamento “X” ou o medicamento “Y”. Só que o paciente não sabe qual é “X” e qual é “Y”. Ele é o primeiro cego.

O médico, por sua vez, recebe o paciente e o medicamento que vai aplicar nele. Mas o médico também não sabe se o medicamento é “X” ou é “Y”. Portanto, o médico é o segundo cego. Como há dois cegos na pesquisa, o método se chama duplo cego.

Digamos que foram selecionados mil pacientes para o grupo “X” e mil pacientes para o grupo “Y”. Depois de 30 dias os resultados são avaliados. Para cada grupo, os médicos verificam coisas como: a) quantidade de dias de internação antes da alta; b) quantidade de pacientes intubados; c) quantidade de pacientes que tiveram complicações cardíacas, renais ou pulmonares; d) quantidade de pacientes que morreram devido à covid; e) quantidade de pacientes que morreram por outras causas.

Depois da avaliação a cegueira é desfeita. Aí os médicos podem verificar qual tratamento – X ou Y – produziu os maiores benefícios e os menores malefícios.

Ivermectina, hidroxicloroquina e outras drogas que fazem parte do kit covid já foram submetidas a este tipo de avaliação. O resultado foi desastroso: não curaram ninguém e ainda aumentaram as doenças cardíacas, hepáticas e renais.

Mas, as pesquisas continuam. Pode até ser que se descubra que em alguma circunstância estes medicamentos funcionem. Por enquanto, o que sabemos é que não só não funcionam como aumentam o risco de morte do paciente.

Enquanto a vacinação em massa não chegar ao Brasil, o melhor que podemos fazer é manter o distanciamento social, usar máscaras, fazer higiene corporal constante. Esta é uma lição que já deveríamos ter aprendido com as 345.287 vidas que já perdemos.

Covid-19 mata. Por muito tempo continuará matando. Mas, se os brasileiros continuarem dando ouvidos aos charlatões, o número de mortes será muito acima do que poderia ser.

Nossa experiência pessoal é enganosa e não serve de guia para dizer se um medicamento funciona ou não. Somente o método científico aplicado de forma correta e honesta pode dizer isto. O resto é xamanismo, empirismo e charlatanismo. Dos três, o charlatanismo é maior inimigo. É o que mais tem prejudicado a saúde do brasileiro neste momento.

Fernando Cabral

Fernando Cabral é licenciado em Ciências Biológicas, advogado, auditor federal e ex-prefeito de Bom Despacho

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