Ramos: espetáculo de fé dos altares na rua
Há muitas festas populares no Brasil, grande parte delas são regionais. E grande parte delas, religiosas. Lembro-me de ter ficado absolutamente encantado quando descobri as festas do Bumba Meu Boi no Maranhão. Isso foi no final dos anos 1980, ou seja, há mais de trinta anos. Guardo na memória que o Maranhão inteiro festejava, havia festas em cada esquina e a população dançava junto. Lembro-me que a celebração durava dois meses e era dividida em períodos, como o nascimento do boi, a vida dele, a morte e, se me lembro bem, a ressurreição do boi. Perdão aos maranhenses que, porventura, lerem esta coluna e encontrarem erros crassos em relação ao Bumba Meu Boi, mas lá se vão trinta anos de memória… decrescente…
Fiquei tão encantado com aquelas comemorações. Fui a várias festas em bairros diferentes, assistindo a períodos diferentes da celebração. Ao final, encontrei um grupo chamada Boi de Axixá, o qual tinha lançado vários CDs com suas músicas. Comprei a coleção completa e até hoje, quando me lembro, passo dias escutando aquela música maravilhosa.
Lembro-me de ter ido até o Santuário de Aparecida do Norte com minha avó, meu irmão e meu primo. Éramos muito jovens, tínhamos entre sete e nove anos, e tudo aquilo nos parecia enfadonho e cansativo demais. Lembro-me de atravessar a passarela que leva os romeiros ao templo, recordo claramente o medo de me perder na multidão, de segurar a mão de minha avó com força. A memória mais impressionante que tenho desta visita ao Santuário é da Sala dos Milagres. São milhares de membros humanos, como pernas, braços, mãos, cabeças, entre outros, em tamanho natural, pendurados nas paredes. Cada pessoa que acredita que recebeu uma cura milagrosa paga sua promessa indo até a Aparecida do Norte, alguns a pé, e depositam a parte do corpo curada em madeira, cera de vela, plástico ou qualquer outro material. Até hoje posso sentir o choro e devoção daquelas pessoas naquela sala. Impressionante!
Neste último domingo, dia 28 de março, eu e minha namorada bom-despachense saímos umas 9:30 de casa para ir correr na matinha, local que relatei na última coluna. Assim que entrei no carro, percebi que havia várias pessoas nas portas de suas casas. Essas pessoas estavam ao lado de mesas enfeitadas com panos brancos, flores e ramos de plantas ornamentais. As mesas variavam de tamanho, mas o cuidado com que foram montadas era igual para todas: impecáveis. Ignorante dos costumes locais, perguntei a minha namorada bom-despachense sobre aquilo. “Hoje é Domingo de Ramos. Em São Paulo não existe isso, não?”.
Rapidamente, voltei à minha infância e lembrei que minha mãe nos fazia, a mim e a meu irmão Eduardo, ir à missa no domingo anterior à Páscoa carregando ramos de palmeiras, que ela arrumava não sei onde. Eu achava lindo quando balançávamos os ramos durante a missa, imitando o que teria acontecido a Jesus quando entrou na cidade de Jerusalém, alguns dias antes de sua morte.
Em São Paulo, o Domingo de Ramos restringia-se ao interior das igrejas e não era uma manifestação de rua, como essa que estava sendo armada em Bom Despacho.
Passamos por várias ruas do bairro e, em todas elas, havia dezenas de pequenos altares visíveis. Passamos por casas humildes, cujas mesas eram muito pobres, mas que deixavam visível que a fé estava ali manifestada. “É sempre assim? Com altares nas ruas? Ou é só por causa da pandemia?”. Com toda a sinceridade, ela me disse que não tinha certeza. Que achava que, em tempos normais, as pessoas caminham em procissão até a igreja, mas que esse ano, acreditava que a “igreja vai até as pessoas”.
Fiquei muito emocionado com o que vi, logo eu, que não sou religioso, muito pelo contrário.
Por acaso, quando pegamos a estrada para chegar ao local em que correríamos, nosso rádio reproduziu a música do Gilberto Gil, “Andar com Fé”:
“Andá com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá / Andá com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá / Andá com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá / Que a fé tá na mulher /
A fé tá na cobra coral / Oh! Oh! Num pedaço de pão / A fé tá na maré / Ta na lâmina de um punhal / Oh! Oh! Na luz, na escuridão / Andá com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá / Olêlê! / Andá com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá / Olêlê! / Andá com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá / Olêlê! / A fé tá na manhã / A fé tá no anoitecer / Oh! Oh! No calor do verão / A fé tá viva e sã / A fé também tá prá morrer / Oh! Oh! Triste na solidão / Andá com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá / Oh Minina! / Andá com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá / Oh Minina! / Andá com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá / Oh Minina! / Certo ou errado até / A fé vai onde quer que eu vá / Oh! Oh! A pé ou de avião / Mesmo a quem não tem fé / A fé costuma acompanhar / Oh! Oh! Pelo sim, pelo não / Andá com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá / Olêlê!”
A música resumia tudo: a fé daquelas pessoas, a minha situação (“mesmo a quem não tem fé, a fé costuma acompanhar, pelo sim, pelo não”), a crença de muitas pessoas, porque a fé não costuma falhar. Claro, a fé não falha nunca! Neste momento de pandemia e mortes, a fé é um dos poucos aliados dos desafortunados.
Corremos na matinha e voltamos para a área urbana. Eu, qual criança, não via a hora de ver o que aconteceria com aquelas pessoas, o que aguardavam plantados à porta de suas casas. Quando passamos pela mesma vizinhança que exalava fé no começo da manhã, já não encontramos os pequenos altares. Eles haviam sido desmontados. “A procissão já deve ter passado por aqui”, tentou me consolar minha namorada bom-despachense.
Fiquei triste! Este foi o primeiro ano que passei o Domingo de Ramos em Bom Despacho. Meio ao acaso, já que estou aqui “quase permanentemente” por causa da pandemia. Mas, no próximo ano quero estar aqui novamente, vou acompanhar a procissão, desejo dividir essa fé/festa com as pessoas que montam seus pequenos altares”. Que linda é essa riqueza cultural brasileira!