Covid: temos mesmo o direito de exigir os nomes de vacinados?
PAULO HENRIQUE ALVES ARAÚJO – Grande polêmica está instaurada em Bom Despacho quanto à revelação da identidade das pessoas que têm recebido as tão esperadas primeiras doses da vacina contra a Covid-19. Na esteira de alguns escândalos que pipocam pelo país, de autoridades que estão se aproveitando de seu poder para se vacinarem e vacinarem os “amigos do rei”, bom-despachenses têm levantado suspeição sobre “os escolhidos” no município. Pois me permitam discordar do que parece ser a posição da maioria dos formadores de opinião: a identidade das pessoas vacinadas não deve ser publicada.
Trabalho há 2 anos em uma ouvidoria pública, na Câmara dos Deputados, em Brasília. Recebemos um volume razoável de manifestações de cidadãos, dentre as quais um bom número de denúncias, especialmente contra deputados e servidores públicos. Todas que atendam a um conjunto de requisitos mínimos, como descrever de fato uma irregularidade e apresentar um mínimo de indícios comprobatórios, são encaminhadas para apuração – numa casa política, uma das mais poderosas do país. Na maioria dos casos, os denunciantes não se identificam ou ainda, quando se identificam, pedem que tenham suas identidades preservadas no processo de apuração. Por quê? Porque normalmente têm medo de perseguição e retaliações de gente poderosa.
A Câmara dos Deputados preserva a identidade dos denunciantes. O Governo Federal editou decreto no final de 2019 para garantir o anonimato do denunciante, se assim ele solicitar. Essa posição não é consensual no meio jurídico ou nas organizações públicas brasileiras. Muitos alegam que a Constituição Brasileira, quando prega que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, garante ao denunciado o direito de conhecer a identidade do denunciante. Os que, como nós, acreditam que o anonimato deve ser garantido (se requerido pelo denunciante), entendem que o interesse do denunciado fica muito menor quando comparado aos prejuízos apurados a partir de denúncias, que se revestem de interesse público – como as que sustentaram investigações da Operação Lava Jato poucos anos atrás.
Imagine então, numa situação hipotética, que um deputado denunciado na Câmara pudesse me obrigar a informar a identidade do denunciante em um processo fundamentado contra ele, alegando ser parte prejudicada no processo. Alguém mais faria denúncias? Você acredita mesmo que um funcionário dele teria coragem de informar um desvio? Ou que uma servidora vítima de assédio moral ou sexual (ou um colega que testemunhou o fato) denunciaria o assediador?
Trabalho desde 2008 com transparência de dados. Em 2011, o Brasil foi um dos primeiros países do mundo a aprovar uma lei que garanta acesso a dados públicos, desde informações sobre obras e outras compras públicas, até os salários de políticos e servidores, passando pelo planejamento das organizações públicas (sim, elas devem ter) e pelas agendas de políticos e autoridades (sim, eles deveriam permitir você saber da agenda pública deles). Estamos longe de ser perfeitos nisso, mas há muitos dados publicados, montanhas deles – publicados e pouco explorados inclusive. Por exemplo, quem faz análise dos dados da Prefeitura e da Câmara Municipal de Bom Despacho?
Mas, voltando à transparência de dados, ela tem seus limites também. A Constituição Brasileira (e os bons costumes) garantem ao cidadão comum o direito à sua intimidade. Com a evolução do uso de dados nossos para finalidades as mais diversas (algumas perversas), o mundo começou a se preocupar com os excessos no uso dos dados pessoais. Se começamos exigindo que sejam compartilhados os nomes de quem recebeu a vacina da Covid-19, ainda mais se pensamos nisso em forma de lei municipal, onde vamos parar?
A prefeitura tem a obrigação de prestar contas de como está utilizando recurso tão precioso para a população de Bom Despacho, é fato. Entretanto, ela não pode expor cada uma dessas pessoas em uma lista pública. A solução desenhada foi bastante razoável para as pessoas deste primeiro grupo, elencando os perfis dos servidores que estão na linha de frente de combate à pandemia que estão sendo imunizados. Ah, alguém pode dizer que são servidores públicos, que eles abrem mão da privacidade quando se revestem no papel de funcionários públicos. Mas não é nesse papel que eles estão quando são vacinados. São cidadãos como nós, que tem direito à preservação de suas informações de saúde, mas que estão sendo vacinados primeiro porque estão correndo mais riscos por se colocarem de frente com o vírus todos os dias – para salvar nossas vidas.
Pode haver desvios? Pode. Para evitá-los, sugiro que se crie ou adote algum canal de denúncias, com todo o rigor e cuidado que ele requer, especialmente a garantia de preservação dos denunciantes, a seriedade e agilidade na apuração, e a devida orientação da população para uso desse canal. Não sem razão é o que fez o governo de Minas Gerais e de outros estados da federação e municípios. A Câmara Municipal poderia ter um canal com essa finalidade. Ou podemos adotar a Ouvidoria-Geral do Estado de Minas Gerais, que já está atendendo a denúncias com esse teor: por telefone no número 162, por WhatsApp no número (31) 99802-9713 ou pela Internet clicando AQUI.
Minha mãe sempre me disse que meu direito termina onde começa o direito do outro. Sei que estamos todos ansiosos pela vacina, sei que ela está demorando muito mais do que deveria para chegar, sei que muitos têm sofrido com a doença e a perda de pessoas queridas, mas não podemos perder nossa humanidade. Senão, daqui a pouco vamos querer a lista de nossos idosos que receberem a vacina publicada no jornal (ótima fonte de informações para golpistas ou assaltantes) ou vamos achar normal um processo seletivo de emprego que “discretamente” elimine quem não estiver vacinado.