A Rede Mineira de Viação e o tempo mágico das ferrovias
LÚCIO EMÍLIO DO ESPÍRITO SANTO – As percepções das crianças que fomos precisam ser confrontadas com o mundo real dos adultos que somos. É comum a experiência vir recheada de fantasias que a razão depois se encarrega de mostrar que esse mundo que a infância viu pode ser muito rico e criativo. Tudo tem uma causa, tudo gera um efeito. Tudo se transforma, mas há um passado que insiste em não passar e que está vivo no nosso imaginário.
Meu avô, Jonas do Espírito Santo, chegou um dia, no início do século passado, de mudança, para Bom Despacho, e se estabeleceu num casebre de pau-a-pique no lugar em que estão hoje a Pousada Jaqueline e a Igreja Universal. Vinha de Azurita, onde exercia as funções de agente de estação da Rede Mineira de Viação. A família, já numerosa, exigia que ele buscasse um centro maior onde pudesse encaminhar os filhos para uma profissão. Aceitou o cargo de maquinista, em nossa terra, para que sua pretensão fosse atendida.
Qualquer criança se jubilava com o aparato da estação ferroviária daqueles tempos. Uma ampla plataforma para correr e pular; subir e esconder nas montanhas de lenha, ao longo da linha, ouvindo o ruído do vapor das locomotivas e a dança de suas manivelas misturando-se aos nossos gritos. Mais um apito estridente e prolongado alertava a criançada distraída, que brincava em meio às manobras infindáveis de máquinas, vagões e pranchas.
Meu avô saía de terno e gravata, portando uma desgastada maleta de fibra, orgulhoso com seu boné, bordado com vivos dourados e um florão reluzente da Rede Mineira. A 207, dali a pouco, partiria para mais uma viagem diária, que duraria nove ou dez horas, até a estação de Carlos Prates, em Belo Horizonte. Minha avó, Adelina Cândida de Oliveira, vinha até o portão, com os filhos, para a despedida. Nos primeiros movimentos da composição, balançava lacrimosa um lenço branco, correspondido pelo aceno de adeus do meu avô. Nas mãos dele, o destino de dezenas de passageiros, uns ficavam nas estações do percurso, outros demandavam terras longínquas como Rio de Janeiro ou São Paulo. Para prevenir acidentes, não era comum uma composição de passageiros transportar vagonetas de carga.
Imponente, poderosa, a 207 rompia marcha para os lados da Vila Aurora e sumia depois da fazenda do Mané Gontijo. Os próprios maquinistas cuidavam da limpeza e aparência da admirada locomotiva. A 207 tinha um sino de bronze que de tão polido parecia ouro. Quando o trem entrava no espaço urbano, começava a frenagem. Uma determinada quantidade de areia, vinda de uma daquelas corcovas que toda máquina tem, era derramada nos trilhos para criar o atrito necessário. Na plataforma, o agente e o chefe do trem coordenavam o desembarque. A maioria dos passageiros usava um guarda-pó para se protegerem das faíscas, pequenos fragmentos de carvão, que vinham misturados à fumaça e faziam pequenos furos na roupa. Minha avó sabia, pelos apitos e badalar dos sinos, que a 207 estava chegando. Como se fosse dia de festa, passava seu pó de arroz e se perfumava com o Cashmere Bouquet, não sem antes preparar uma boa mesa com broa de fubá, rosquinhas de farinha de trigo e biscoitos de polvilho. Depois subia para o portão, onde outras esposas e parentes de ferroviários, formando uma só família, dividiam as alegrias do retorno.
Sabiam todos que havia motivo para comemorar. Com a segurança que as ferrovias ofereciam, os perigos não podiam ser minimizados. Os descarrilamentos eram constantes e, não raro, ocorriam acidentes como o tombamento da máquina, o mais temido de todos, porque o maquinista e seus ajudantes corriam risco de sofrer queimaduras graves, debaixo da fornalha ou da água fervente da caldeira. Um dos trechos mais perigosos era o ramal oeste, que findava na Barra do Funchal, no alto da Serra da Saudade.
A vida seguiu seu curso. A lenha foi substituída pelo pegajoso carvão de pedra, repelente por si próprio, devido ao odor de óleo cru. O diesel e o asfalto vieram logo depois e ditaram suas regras. Os tempos mágicos das ferrovias não acabou, ficaram apenas encantados, como diria Guimarães Rosa, e vivem em nossos sentimentos como símbolos de um passado sempre criativo e sedutor.