SP x BD: jogar fora tudo que aprendi de meus pais
ALEXANDRE MAGALHÃES – Quando eu era criança, há uns cinquenta anos, ouvia sempre a mesma ladainha de minha mãe: “hoje nós vamos visitar a tia fulana. Ela vai oferecer bolo e café. Vocês dois (olhando firme para mim e para meu irmão dois anos mais novo do que eu) sejam educados, agradeçam e não peguem nada. É muito feio ficar comendo na casa dos outros. Vão parecer mortos de fome, que não há comida em casa”. Aqueles ensinamentos eram lei. Se desobedecêssemos a eles, quando chegávamos em casa, apanhávamos.
Uma vez, fomos visitar uma tia de meu pai, a tia Dizulina, que era casada com o tio Diguiner. O casal português, muito bem de vida e muito educado, tinha uma cachorra da raça Collie. Minha mãe, seguindo a rotina pré-visitas, ameaçou a mim e a meu irmão: “hoje, vamos visitar a tia Dizulina e lá há uma cachorra enorme e brava. Se você comerem mais do que um pedaço de bolo, a cachorra atacará vocês e morderá muito”. Éramos crianças e entendemos que o problema era o animal e não comer muitos bolos.
Quando estávamos na bela casa do casal, a tia Dizulina ofereceu bolo aos dois irmãos amedrontados. A cada vez que tia Dizulina insistia para que pegássemos um pedaço de bolo, eu e meu irmão rastreávamos a sala em busca do cão. E não comíamos o bolo. Tia Dizulina perguntava a nós sobre querer bolo, mas continuava entretida na conversa com meus pais. Em algum momento, percebendo que não comíamos o bolo, perguntou por que não nos servíamos. “E a cachorra?”, perguntamos em uníssono. “Meus amores, a cachorra está no canil. Ontem choveu muito e ela está cheirando mal. Antes de vocês irem embora, passaremos lá no canil para vocês poderem vê-la”. Atacamos o bolo e o devoramos inteirinho.
De volta a nossa casa, apanhamos por ter comido o bolo todo. E, pior, não entendemos nada. Se a cachorra não estava, não havia perigo de sermos mordidos por comermos bolo. Desta vez em diante, minha mãe passou a dizer que não era para comermos, pois era falta de educação. E aprendemos a lição.
Há três anos, quando comecei a namorar minha amada bom-despachense, aplicava toda minha educação paulistana recebida de meus pais. “Quer café?”, perguntavam-me. “Não, obrigado”, respondia e respondo até hoje.
Passado algum tempo, diante do quase choro de minha sogra quando eu disse não a um pão de queijo quentinho, minha namorada bom-despachense alertou-me que o povo de Bom Despacho e de Minas Gerais inteiro vê com muito maus olhos a não aceitação de uma oferta para beber ou comer.
Expliquei que não me neguei a pegar um pão de queijo por falta de educação, mas porque não tinha vontade de comer nada naquele momento. “Em Bom Despacho, estando com vontade ou não, deve aceitar a oferta e comer o pão de queijo. E deve comer quantos pães de queijo te oferecerem. Aqui, e em toda Minas Gerais, não aceitar algo é muito feio é uma desfeita”.
Teria minha mãe me ensinado tudo errado em minha infância?
Estudei um pouco o assunto, conversei com algumas pessoas de Bom Despacho e de São Paulo. É um problema cultural, mais do que de educação ou falta dela. Cada cultura vê a comida e a oferta dela a outras pessoas de maneira diferente. Em São Paulo as visitas são raras, ninguém quer visitar ou ser visitado. A maioria das pessoas, especialmente as mais jovens, não sabe cozinhar ou passar um café. Quando a campainha toca, começamos a suar frio e a querermos sair pela janela, só para não atender o visitante. Por isso, preferimos encontrar os amigos longe de casa, em um bar ou restaurante.
Em Bom Despacho, as pessoas adoram ser visitadas, sempre tem pó de café e pão de queijo para assar. Foram criadas para oferecer e para aceitar a oferta que os parentes e amigos fazem a cada visita.
Da mesma forma que é difícil mudar os ensinamentos que recebi de minha mãe quando eu era criança, é difícil para um bom-despachense mudar sua maneira de encarar o mundo.
Neste último domingo, dia 3 de janeiro, já no ano novo, visitei meus sogros, cunhados e concunhadas no sítio da família nos Cristais. Uma amiga da família, sabendo que eu sou vegano, resolveu fazer um pudim especialmente para mim. O doce era um manjar de coco com ameixas pretas, com muita calda.
Fui correndo da casa de minha namorada bom-despachense até o sítio e, claro, cheguei muito suado. Logo que cheguei, minha namorada, que já estava no sítio, correu para buscar-me para mostrar o doce feito em minha homenagem. Pedi uns minutos para descansar e para o suor parar. Tudo normal e educado, para um paulistano, mas não para alguém com outra cultura.
Depois do almoço, a amiga veio conferir se eu já havia experimentado o manjar. Como eu estava tomando cerveja, não queria comer doce naquele momento e disse isso para ela. Tudo normal e educado para um paulistano, mas não para alguém com outra cultura.
Bem mais tarde, lembrei do manjar e decidi experimentá-lo. Comi e gostei. A amiga que havia feito o doce já havia ido embora. Minha namorada perguntou se eu havia gostado do manjar e, diante de minha confirmação, ligou para a amiga para contar-lhe.
Intrigado, perguntei a minha namorada por que ela havia ligado para a amiga para dizer que eu havia gostado do doce. Ela me explicou que a amiga havia ficado muito chateada, pois eu não quis ver o doce antes e não havia comido o manjar logo após o almoço. Havia considerado muita falta de educação.
Diante do estrago que eu havia causado, liguei para a amiga e agradeci. Tentei explicar que eu havia agido normalmente e com muita educação para um paulistano, mas não para alguém com outra cultura.
Fiquei imaginando a quantidade de amigos e parentes de minha namorada bom-despachense que eu ofendi nestes três anos, sem fazer nada além de ser educado à maneira paulistana, mas não na cultura local. A todos, peço desculpas, mas entendam que cada local tem seus costumes e aquilo que é bom em um lugar, pode ser péssimo em outro e vice-versa. Tenho uma camiseta com a frase “a culpa é dos meus pais”. Vou começar a usá-la mais vezes em Bom Despacho…
Feliz 2021!