O Natal e a bicicleta para todos num certo Natal há 60 anos

Algumas festas anuais foram criadas para aumentar as vendas do comércio. Outras, porém, têm origem em acontecimentos naturais e simbolizam o apreço pela vida e pelo renascimento. São odes à solidariedade, à alegria, ao amor. Um exemplo são as comemorações de dezembro, praticadas por todos os povos antigos do hemisfério norte que conheciam a astronomia, acreditavam na astrologia e se regiam pelas estações do ano. Para eles, o final do mês de dezembro tinha um significado muito especial: entre os dias 21 e 22 acontecia o solstício de inverno. Este era o momento em que o sol terminava sua fuga para o Sul e começava sua torna-viagem para o norte. Os dias curtos e as longas e frias noites começavam a dar lugar aos dias longos e às noites curtas e quentes. Não de repente, mas como promessa que se cumpria dia a dia. Embora marcasse o início do frio mais intenso do inverno, o solstício de dezembro prenunciava a certeza da volta da primavera, do verão e do outono que se sucederiam. Já para todos os povos cristãos do mundo todo, o Natal, comemorado no dia 25 de dezembro, tem ainda mais força e simbolismo do que o solstício de inverno. Ele simboliza o nascimento do Cordeiro de Deus, destinado a salvar o mundo. Hoje é Natal outra vez. Hora de nos lembramos das promessas que ele carrega em seu ventre.

 

As mães são exemplo de generosidade. Se preciso, elas ficam sem comer para dar comida aos filhos. Se preciso, elas ficam sem dormir, para que os filhos durmam. Se preciso, elas trabalham dia e noite para que os filhos possam comer, dormir e estudar.

Assim são as mães. E elas fazem tudo isto e muito mais sem parecer que há sacrifício, angústia ou dor. Esta generosidade infinita foi assim sintetizada pelo poeta Coelho Neto:

“Ser mãe é andar chorando num sorriso!

Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!

Ser mãe é padecer num paraíso”

Assim são as mães. Assim foi minha mãe. Para cuidar da filharada, para ela não havia sacrifício grande demais; não havia problema grande demais; não havia exigência grande demais. Todos os dias era dia de lutar pela comida, pela roupa, pelo uniforme, pelo material escolar, pelo remédio, por tudo que seus filhos precisavam.

Não era sem razão que, quando menino, eu via minha mãe como uma fortaleza. Uma fortaleza que podia carregar dois filhos nos braços, arrastar dois ou três na barra da saia e ainda arranjar tempo e energia para cuidar dos afilhados.

Mas o tempo tudo corrói e tudo leva. Devagar, ano a ano, pouco a pouco, vai nos levando e vai levando aqueles que amamos e que nos amaram. Este ano, este tempo intransigente, implacável, e inesquivável levou minha mãe para sua última jornada. Aquela da qual não há retorno. Aquela que deixa uma saudade irremissível entre os que por enquanto ainda ficam.

Agora chega o Natal. O primeiro sem ela. Com ele, chegam a saudade e a tristeza.

Um ano atrás, embora frágil e vergada sob os seus 92 anos, minha mãe ainda era a fortaleza que reunia a família, organizava as comemorações, resolvia as desavenças, recriava o clima natalino. Clima de festa, de alegria, de aconchego, de família.

Este ano, pela primeira vez, não a teremos entre nós. Sem ela, nem sei se voltaremos a ter uns aos outros, como ela nos ensinou a fazer. Ensinou não com palavras, mas fazendo.

Pela primeira vez a semana do Natal me deixou com o coração confrangido. Tenho lembranças vívidas do último almoço de Natal com ela. Pela primeira vez, ela havia decidido que não faria a Ceia. Teríamos apenas o almoço. Ela não queria ficar acordada até tarde. Foi a primeira vez, em quase 70 anos, que a vi quebrar a tradição da ceia após a Missa do Galo.

Por isto, neste Natal pressinto que não conseguirei afastar a melancolia; afastar esta tristeza que de quando em quando surge do nada, me aflige, embarga minha voz e coloca um peso no meu peito.

Mas, com a saudade me chegam também muitas lembranças boas que minha mãe nos deixou. Por toda sua vida ela colocou as necessidades e desejos dos filhos na frente das necessidades e desejos dela. Nos natais ela se desdobrava mais ainda para fazer com que todos compartilhassem as alegrias do aconchego familiar e do espírito natalino.

São lembranças boas que se diminuem a saudade e aliviam a alma.

Embora urbana, depois de casada, minha mãe foi morar na roça. Lá, trabalhou de sol a sol ao lado do meu pai como se tivesse feito aquilo a vida toda. Vieram os filhos e ela não queria deixá-los sem escola. Vieram para a cidade. A vida sacrificada, com trabalho de sol a sol continuou. Mas a minha mãe não soltava uma queixa, uma blasfêmia, uma palavra de desânimo. Quando chegava o Natal, mesmo nos momentos mais difíceis, ela reunia os filhos e nós montávamos o presépio.

No mato colhíamos musgos de cores variadas e sementes diversas para enfeitar o estábulo. A árvore de natal era feita de um galho cuidadosamente escolhido e fincado numa lata cheia de pedra que revestíamos com papel que nós mesmos preparávamos.

O papel era o mesmo que usávamos para armar a gruta: sacos de cimento que pintávamos de preto e dávamos brilho com purpurina. O lago era um espelho colocado sob o musgo. O capim tão natural que enfeitava o presépio era arroz com casca que nós germinávamos.

Depois vinham as imagens: os reis magos, os camelos, os carneirinhos, o burrinho, a manjedoura.

Esta construção familiar que durava dias só aumentava a expectativa dos filhos pelo grande dia.

Os presentes eram modestos, mas sempre chegavam. Cada filho ganhava os seus. Uma boneca e uma roupinha para as meninas; um carrinho e uma bola para os meninos; outros pequenos mimos que nos enchiam de alegria.

O Natal da minha infância era cheio de animação. Mas, no grande dia, mamãe nos mandava para a cama. Dizia que ela e o papai iam para a Missa do Galo. Enquanto isto, Papai Noel ia deixar os presentes. Mas era preciso que todos dormissem, porque senão o bom velhinho não viria.

Não aceitávamos! Queríamos ficar acordados para ver Papai Noel chegar. Como não sabíamos por onde ele ia entrar, costumávamos dividir as tarefas: combinávamos de um vigiar a porta da sala, outro a da cozinha; uma vigiava uma janela, outra vigiava a chaminé. Todos os postos assim guarnecidos, tínhamos certeza que íamos ver Papai Noel chegando.

Mas que nada!

Nenhum de nós, nos nossos 8, 7, 5 anos resistia ao passar das horas. Dormíamos. Mesmo com tanta excitação, e mesmo com a expectativa de finalmente pegar Papai Noel trazendo os presentes, não resistíamos ao sono. Mas, de manhã, lá estava, o Menino Jesus na manjedoura que estivera vazia até a noite anterior. Ao lado do presépio, perto da árvore de natal, estavam os presentes.

Naquele dia ninguém queria tomar café, escovar os dentes, trocar de roupa. A animação não deixava. Rasgávamos os pacotes, agarrávamos os brinquedos e saíamos brincando. Eram bonecas, bolas, cornetas, tamborzinhos, carrinhos. Havia algumas coisas mais utilitárias também. Uma roupa nova, um sapato, um par de meias.

Um certo Natal – lá se vão 60 anos – tivemos uma surpresa. Além dos pacotes de sempre, estava encostada na parede, uma bicicleta. Corremos todos para ela. Era uma bicicleta caprichosamente reformada, pintada de nova. Estava reluzente. Afinal, meu tio Luiz era o mais afamado consertador e reformador de bicicletas de toda a região. Ele e o Wilson (que ainda conserta bicicletas em Bom Despacho) faziam mil milagres com as bicicletas.

De quem seria?

Como se dizia antigamente, começamos a babar. Aí vimos um papel pregado no guidão da bicicleta. Nele estava escrito: Para todos.

Era um presente coletivo.

Não demorou um átimo e já estávamos com ela na rua, pedalando e fazendo algazarra.

Daquela bicicleta saíram muitos arranhões e até um braço quebrado. Mas quem se importava? Naquele tempo crianças não eram criadas em redomas de vidro. Elas tinham o direito de se machucarem. Se fosse um arranhão apenas, nada que um choro rápido e um carinho de mãe não curasse num piscar de olhos. Se fosse um braço quebrado, nada que o Dr. Juca não pudesse dar um jeito.

Envelheci. Passei 68 natais com minha mãe. De todos que minha memória alcança, guardo ternas lembranças.

Este ano, pela primeira vez, eu, meus irmãos e irmãs, primos, amigos, teremos um Natal sem a estrela brilhante chamada Maria de Castro que nos guiou pela vida como a Estrela de Belém guiou os três reis magos até Nazaré. A estrela se foi. Subiu aos céus. Mas o brilho que ela deixou continuará nos guiando pelos caminhos que ela apontou.

Neste Natal a saudade da minha mãe vai me doer. Mas não será um Natal de melancolia, mas sim de boas lembranças.

No solstício de dezembro os povos primitivos comemoravam o retorno do sol. Nos últimos dois mil anos os cristãos comemoram o nascimento de Cristo. Eu juntarei a estas tradições a lembrança do último Natal que passei com minha mãe. Não posso e não quero evitar a saudade e a tristeza, mas vou celebrar cada presente, cada alegria, cada carinho que ela me deu durante tantas décadas. O principal deles, o presente da vida.

Neste Natal, desejo a todos os bom-despachenses que já perderam seus pais, suas mães, irmãos e irmãs, que possam lembrar se deles não apenas com saudade, mas principalmente com carinho.

Àqueles que ainda têm a alegria de contar com a presença dos que amam, que possam celebrar juntos – mesmo que só em espírito – mais um ano de convívio, de fraternidade, de amor. As boas lembranças que construirmos agora serão o bálsamo que nos aliviarão no futuro, quando já não tivermos a companhia deles.

Neste Natal, nós, irmãos mais velhos, vamos contar mais uma vez a estória da famosa Para Todos. Os netos e bisnetos que ainda não ouviram, vão ouvir. Os que já ouviram, vão ouvir de novo. Vamos rir dos arranhões, do braço quebrado, de tantas estrepolias que fizemos. Vamos confessar que vivemos, porque minha mãe não apenas nos deixou viver, mas também nos ensinou a viver. Vamos celebrar a presença dela como se ela ainda estivesse entre nós.

Feliz Natal! Próspero Ano Novo.

Fernando Cabral

Fernando Cabral é licenciado em Ciências Biológicas, advogado, auditor federal e ex-prefeito de Bom Despacho

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