Minhas memórias este ano estão sendo queimadas
Como bom paulistano, adoro olhar para a natureza, para o mato alto, para um rio que corre, para bichos de todas as naturezas: os que nadam, os que correm, os que voam, os que pulam e os que se rastejam. Sempre que posso, fico horas parado olhando para a mata virgem ou mesmo para um pasto. Adoro ir de Bom Despacho a Santo Antônio do Monte (que demorei um ano para perceber que era o mesmo lugar chamado pelos bom-despachenses de Samonte) só para observar várias montanhas, uma após a outra, descidas e subidas de verdes diferentes.
Sou tão urbano, que até uma floresta de eucalipto me emociona. Relatei neste espaço minha alegria de correr ou pedalar às margens do rio Lambari ou Pará e como fico contente de poder entrar nestes rios e nadar um pouco, já que nunca tive essa chance em minha cidade natal, cujos rios são esgotos a céu aberto.
Costumo relatar a meus amigos, parentes e alunos que quase todos os lugares maravilhosos que conheço são verdes, pois são no meio do mato. As exceções são contadas em poucos dedos: Lençóis Maranhenses, embaixo da água em Fernando de Noronha e as geleiras de El Calafate, no extremo sul da Patagônia argentina. Em todos estes lugares, perdi o fôlego e derramei muitas lágrimas de tanta felicidade e emoção ao me deparar com aquelas belezas.
Em 1989 ou 1990, quando tinha algumas férias atrasadas no The Bank of California, banco norte-americano para o qual trabalhei, passei quarenta e sete dias passeando pelo Maranhão, Pará e Amazonas. Como paulistano ignorante que sou, planejei a viagem toda de carro (lembrando que nesta época não havia internet, ou seja, as pesquisas eram via revistas ou ligando para agências de viagem). Quando fui buscar o automóvel alugado, o atendente percebeu meu plano de ir de São Luiz a Belém pelas “estradas à beira mar” e me explicou que não havia rodovias perto das praias. Só se chegava às praias de barco. O lado bom do cancelamento de minha viagem dos sonhos pelas praias maranhenses e paraenses é que usei os dias que gastaria dirigindo para conhecer os Lençóis Maranhenses.
Quando cheguei a Belém, de avião e não de carro, resolvi conhecer a floresta amazônica por dentro. Fiz passeios maravilhosos no Pará, como a visita à Ilha do Papagaio, local onde dormem dezenas de milhares de aves, que proporcionam um lindo e barulhento inicio de dia. Conheci Alter do Chão, os rios da região, e contratei um guia de floresta para conhecê-la melhor e em segurança. Conheci até uma tribo indígena e experimentei a “cerveja” deles, produzida pelas mulheres da aldeia, que mastigam uma raiz parecida com uma mandioca e cospem o líquido em um grande tacho: essa é a cerveja, que é sorvida ainda quente. Como dizia minha falecida avó materna: “se for ao inferno, abrace o capeta”. A cerveja mastigada e cuspida era bem próxima do chifrudo…
Depois do Pará, fui ao Amazonas, onde também contratei um guia de florestas e visitei mais um monte de lugares maravilhosos e inesquecíveis, muito verde e com muita água.
Quando visitei o Pantanal, também no começo da década de 1990, encontrei uma natureza exorbitante, muitos animais de todos os tipos, passeios de barco a centímetros dos jacarés, nadar junto com as piranhas, entre outras coisas que um turista paulistano abestalhado costuma fazer. Minha lembrança de Bonito incluem horas nadando ao lado de peixes gigantescos, cobras, tartarugas e da água absolutamente cristalina.
Recentemente, quando já frequentava Bom Despacho, conheci a Lapinha, Tabuleiro e outros vilarejos na Serra do Cipó ou perto dela. Fiz, junto com minha namorada bom-despachense, a subida ao ponto mais alto da Lapinha, a travessia de dezenas de quilómetros Lapinha-Tabuleiro, muitos passeios longuíssimos a pé para ver e nadar em cachoeiras deslumbrantes.
Nos últimos meses tenho acompanhado e me entristecido muito com as notícias diárias sobre a destruição da Amazônia, a maior queimada desde que meus antecedentes portugueses invadiram esta terra em 1500. Tenho também acompanhado a proposital destruição do Pantanal, com cenas horrorosas de animais carbonizados, bichos machucados e desesperados por um gole d´água, milhares de animais lindos feridos pelo fogo. Criminosamente triste.
Minha última tristeza foi saber que a Serra do Cipó também está queimando. Um lugar que visitei duas ou três vezes e que me apaixonei pelas belezas e simplicidade de seu povo sendo destruído.
Há algumas semanas, eu e minha namorada bom-despachense dormimos em Diamantina, tanto na ida para a Bahia, quanto na volta. Da sacada do hotel, víamos as chamas altas e amedrontadoras em uma reserva de mata nativa. Perguntei para a recepcionista, eu já em desespero, sobre as chamas que estavam perto do hotel e ela, calmamente, me disse: “o pessoal botou fogo ali, mas não chegará aqui não, fique tranquilo”. Como pôde manter a calma vendo a natureza sendo destruída criminosamente?
Triste perceber que uma parte dos locais que constituíram minhas lembranças está sendo consumida e que minha filha pode nunca ter a emoção que tive ao visitar estas áreas. Parafraseando o livro do grande Ignácio de Loyola Bandão, tenho dito a minha filha: “Não verás país nenhum”.
Minha única sorte e alegria é saber que ninguém pode queimar minhas lembranças e memórias. Felizmente!
Alexandre Sanches Magalhães é empresário, consultor e professor de marketing, mestre e doutor pela USP e apaixonado por SP e BD