Na trilha dos lerdos e estafados muares que puxavam ambulância

Através da correspondência dos delegados municipais com o Chefe de Polícia, transparece uma questão bastante séria e ainda persistente até os tempos atuais. O policial é um importante agente comunitário, do qual sempre se exigiu muito bom senso, espírito de justiça e senso de legalidade. Por um motivo ou outro, até mesmo político-partidário, o delegado era cobrado pela comunidade e, no final, se via obrigado a pedir a saída ou a permanência de integrantes do destacamento. Alguns conquistavam definitivamente a simpatia do público, como foi o caso do Soldado Manuel Santos, que, não obstante seu bom relacionamento, havia sido transferido para Juiz de Fora. Em agosto de 1913, o então 2º suplente do delegado Coronel Segismundo Marques Gontijo, pede o retorno do Soldado Manuel, “em benefício da ordem e tranquilidade na Vila”. Não temos mais detalhes sobre os reais motivos que levaram o delegado a mostrar tamanho empenho no retorno do policial, mas com toda certeza o Soldado Manuel tinha excelentes qualidades e havia por isso conquistado a admiração e estima da população. Fizemos mais buscas noutros setores do Arquivo Público Mineiro, mas não encontramos nenhum rastro daquele militar que acabou entrando para a história da nossa amada Bom Despacho.

Assim como se pedia a permanência, também se pedia a transferência daqueles que se indispunham com a autoridade policial máxima do município ou tinham algum comportamento inadequado ou, ainda, atitudes que despertavam a reprovação da comunidade. No mesmo ano de 1913, o delegado José Pio da Silva Cardoso pedia a transferência dos soldados Augusto Gomes de Macedo e Antônio Firmino de Menezes, alegando que eles não mais lhe mereciam a confiança. Não há relato de nenhum fato desabonador a respeito da conduta dos dois policiais, mas por uma razão, às vezes, inconfessável, o delegado, representante e pessoa influente na comunidade, se indispunha com o destacamento militar, que vinha de fora e, na maioria dos casos, sem raízes na cidade.

A história aguça nossa curiosidade e, ao transportar-nos ao tempo dos nossos antepassados, força-nos a um exercício de imaginação e empatia. Assim, é inevitável que nos coloquemos no lugar dos que viveram aqueles tempos, quando a energia elétrica e o automóvel eram milagres da técnica e da tecnologia, como são hoje as viagens interplanetárias, o celular e a televisão. Não imaginamos, hoje, que invenções nossos descendentes irão conhecer daqui a um século ou mais. Por isso, quando deparo com um ofício do provedor da nossa Santa Casa de Misericórdia, encaminhado ao Chefe de Polícia presumivelmente em 1915, em que ele pede duas ambulâncias para melhorar a assistência à saúde no recém-criado município, não resisto à tentação de me colocar no lugar das pessoas que habitavam essas paragens no início do século XX. Será que podiam imaginar um Centro de Tratamento Intensivo móvel ou uma dessas ultramodernas aeronaves de socorro e resgate?

O provedor da Santa Casa pedia, naquele ofício, duas ambulâncias de tração animal, alegando que “das duas ambulâncias desse tipo, existe apenas uma em serviço, irregular e intermitente, não só porque este carro precisa de conserto, com sua parelha de lerdos e estafados cavalos, mas também precisa ser substituída.” É verdade que a cidade era pequena e buscar um doente em casa ou um desfalecido em via pública era uma tarefa fácil para qualquer veículo de tração animal. Essa situação da nossa Santa Casa revela, em primeiro lugar, que o transporte de enfermos era um serviço disponível para a população, e mostra, por outro lado, a situação de penúria em que vivia a Santa Casa de Misericórdia, que, nos primeiros tempos republicanos, mesmo com a parelha de lerdos e estafados muares, cumpria o importante papel social de acolhimento aos pobres, indigentes, idosos, órfãos e viúvas desamparadas, alimentação para os encarcerados e administração de cemitérios.

Lúcio Emílio do Espírito Santo é coronel reformado da PMMG, colunista, escritor e membro da Academia de Letras João Guimarães Rosa, da PMMG.

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