Independência e patrimônio cultural de Bom Despacho

O 7 de Setembro sempre foi uma data festiva em minha infância aqui em Bom Despacho. Claro que os tempos são outros, no meio do caminho do desfile deste ano havia uma pandemia, mas é interessante observar como evoluíram algumas tradições.

Lembro-me que o Desfile de 7 de Setembro era um grande evento, preparado com antecedência e aguardado com expectativa. As escolas preparavam seus alunos para o desfile e selecionavam alguns para posições de destaque, como os membros da fanfarra – aquela turma que tocava bumbo, surdos, tarol e outros instrumentos de percussão para marcar o passo do desfile da escola. Essa tradição provavelmente estava ligada à nossa história militar em função da presença do 7º Batalhão de Polícia (e do Comando Regional!) em Bom Despacho. Deve ter influência também o fato de esse período coincidir com os últimos anos do regime militar no Brasil. A verdade é que era uma grande festa, em que rememorávamos símbolos nacionais, o hino da independência, um pouco da história e desfilávamos pela manhã em alguma rua ou avenida importante do centro da cidade. Como iam todas as crianças, estavam lá também os pais, avós, todo mundo que a gente conhecia. E tinha pipoca, refrigerante e algodão doce num sol escaldante!

Semana Santa

Outra tradição que marcou muito nossa infância foram as procissões e cerimônias da Semana Santa. A Procissão do Enterro, na 6ª Feira da Paixão, era impressionante! Lembro-me que, em alguns anos, o início da procissão já estava chegando de volta à Praça da Matriz e ainda havia gente iniciando o trajeto do outro lado da praça. Do que me lembro, parecia haver 100 mil pessoas caminhando e orando numa cidade com 30 mil habitantes. Confesso que até hoje fico por entender por que dividimos essa procissão em várias aqui na cidade, por que as paróquias não mantiveram uma procissão única pela cidade. Sei que deve haver alguma questão logística, mas tenho saudades daquela caminhada de passos uníssonos intercalados pelas matracas por toda Bom Despacho.

Mas a Semana Santa ia muito além da Procissão do Enterro. A Semana Santa já começava com o Domingo de Ramos, quando milhares de ramos eram abençoados nas missas e ficavam depois a salvaguardar nossas casas por semanas. Na 2ª feira, a imagem de Nosso Senhor dos Passos ia em procissão da Igreja Matriz para a Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Na 3ª feira, por sua vez, a imagem de Nossa Senhora das Dores ia da Matriz até a Igreja da Santa Casa. Na 4ª feira, aconteciam então duas procissões, uma saindo do Rosário e outra da Santa Casa, para se encontrarem na Praça da Matriz, com as imagens do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores. Era a Procissão do Encontro. Na 5ª feira, ocorria o Lava-pés na Matriz de Nossa Senhora do Bom Despacho. E finalmente a Procissão do Enterro na 6ª feira.

Esse roteiro de 2ª a 6ª deixava um ar de tristeza na cidade. Os rituais e o simbolismo eram muito ricos e fortes, uniam nossas famílias em torno dessas cerimônias, e moldavam o clima da cidade. Claro que abriam espaço também para vermos os amigos e as belas amigas pelas ruas e praças da cidade – a gente rezava, mas também fazia um social, vamos reconhecer. Mas o clima predominante era de tristeza, acompanhando a memória do calvário de Jesus Cristo.

No sábado, entretanto, tudo se transformava. Era Sábado de Aleluia! O que fora sombrio e triste desde a 2ª feira se transformava numa das noites mais festivas da cidade, a do Baile de Aleluia, onde se intensificavam a interação com os amigos e, claro, as paqueras. Tudo numa preparação para a celebração máxima no Domingo de Páscoa, domingo da ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Tenho certeza de que, se você viveu essa Semana Santa aqui em Bom Despacho alguma vez, também não se esqueceu. Nem dos desfiles de 7 de Setembro. Sei que os tempos são outros, sei que temos uma diversidade muito maior de religiões e crenças atualmente, sei que nos distanciamos do civismo por uma série de fatores, mas acredito que essas tradições estão nas nossas raízes como povo e precisam ser cuidadas e valorizadas.

Reinado

Falando em tradição, Bom Despacho tem também uma importante história quilombola. A antiga Tabatinga, atual bairro Ana Rosa, foi criada como um refúgio de escravos e é reconhecida nacionalmente como um centro de preservação e de luta pela valorização da cultura negra e quilombola. Quem da minha geração nunca ouviu falar da Tiana em sua infância? O que inicialmente era tratado com preconceito, adquiriu ao longo dos anos um ar de respeito e admiração pela força e determinação daquela senhora para preservar a cultura e melhorar a vida das pessoas negras que participaram da formação de nossa Bom Despacho.

O Reinado – ou Congado – é um dos produtos dessa origem africana. Tendo como marca a miscigenação entre tradições de cultos africanos e do catolicismo, a festa acontece todo ano na festa de Nossa Senhora do Rosário, a “santa dos pretos”. Durante 5 dias, mais de 20 cortes de Reinado desfilam pela cidade sua música, suas coreografias, sua distinta indumentária e, principalmente, sua fé. Da sacada na Avenida das Palmeiras, eu e meus irmãos sempre fomos fascinados com aqueles grupos de homens e mulheres que subiam e desciam pela rua perfilados, tocando diversos instrumentos e entoando seus cânticos.

A maioria de nós pode não se dar conta, mas Bom Despacho tem um patrimônio cultural riquíssimo. Pode parecer comum para você que as ruas amanheçam todas cobertas de desenhos feitos com serragem colorida no feriado de Corpus Christi. Ou ainda que você passe parte da madrugada com familiares e amigos trabalhando solidariamente na montagem desses tapetes. Ou que tirar leite seja um padrão em quase todas propriedades rurais da região e quase todos já tenham pelo menos experimentado produzir um queijo próprio. Ou que as festas juninas na roça reúnam tanta gente e tenham em sua maioria o propósito de ajudar entidades beneficentes. Ou que todo mundo já frequentou rancho às margens do São Francisco ou da represa de Três Marias. Todos esses são traços marcantes da nossa cultura, da nossa tradição. E todos eles carregam uma carga riquíssima de história, experiências e conhecimentos.

Acredito que não perdemos em nada para cidades como Parintins, Joinville, Trindade ou Campina Grande. O que essas cidades têm em comum? Conseguiram mostrar seu patrimônio cultural para o país, gerar riqueza para a população local e perpetuar suas tradições, fazendo elas cruzarem fronteiras. Pense que fantástico seria se Bom Despacho fosse, por exemplo, a capital nacional do Congado? Ou entrasse na lista de lugares para se passar a Semana Santa dos católicos do Brasil?…

“Se farinha fosse americana, mandioca importada, banquete de bacana, era farinhada.”

Paulo Henrique Alves Araújo

Paulo Henrique Alves Araújo é gestor e servidor público, mestre em computação e gerente de projetos de inovação

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