Controle social: o olho do dono faz diferença também no governo
A fiscalização do governo pela sociedade pode fazer muita diferença, tanto no combate à corrupção quanto na promoção da eficiência na administração pública. A ausência de controle, seja pelo desinteresse ou pela dificuldade no acesso e compreensão de informações, gera oportunidades para inúmeros desvios e falhas. O olho do dono é que engorda o boi!
Nos últimos anos, temos visto uma enxurrada de escândalos. Anões do orçamento, mensalão, mensalinhos, operação Lava Jato. Presidentes cassados, ex-presidentes (da República e da Câmara dos Deputados), governadores, senadores, deputados e servidores públicos presos. Uma leitura comum é de que estamos cada vez piores. Outra interpretação menos frequente é de que estamos melhorando à medida que denúncias têm sido apuradas, recursos recuperados e criminosos punidos. Onde antes havia certeza de lucro e impunidade, agora já paira uma nuvem de controle e punição.
Via de regra, o poder público compra com preços acima dos pagos pela iniciativa privada. Por quê? Ah, porque demora pra pagar, porque o processo licitatório introduz custos extras, porque o risco de uma interrupção seria maior, porque… Bom, porque, na iniciativa privada, o dono está de olho, o dono cobra redução de custos, celeridade e resultados, tanto de quem fornece quanto de quem recebe o produto ou serviço. O dono é palpável e presente. No poder público, os donos somos nós, todos nós. Nós temos dificuldade para entender isso. Têm dificuldades os que gerem o poder público, porque se acham donos (ou se comportam como); têm dificuldades os que pagam seus impostos para manter essa “coisa pública” e não entendem que são donos ou não entendem que direitos e deveres isso lhes confere. O fato é que a coisa pública tem um dono abstrato, com representação e poder diluídos. Daí os ratos fazem a festa.
Principal símbolo do combate a corrupção, a Operação Lava Jato recuperou bilhões de reais e colocou um bom número de políticos e empresários atrás das grades. A atuação de uma nova geração de procuradores, juízes, auditores-fiscais e policiais viabilizou isso. Você pode não concordar com os métodos, pode dizer que a operação se politizou demais e alguns líderes perderam-se com a fama, pode até dizer que ela só olhou para a Petrobras e grandes empreiteiras “parceiras”, deixando um mundo de outras empresas de fora das investigações, mas não pode negar que a Lava Jato foi uma grande novidade num país acostumado com impunidade, especialmente nos crimes de corrupção. E, com isso, ela reacendeu a esperança de que dá…
Começaram a pipocar pelo país uma série de iniciativas cidadãs para contribuir com a moralização na política e na administração pública. O Instituto OPS é um bom exemplo disso. A partir de 2013, o músico e blogueiro Lúcio Big começou a dedicar muitas horas de seu dia para supervisionar os gastos de deputados federais e senadores. A partir das informações publicadas nos portais da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, e utilizando os canais de denúncias das ouvidorias dos dois órgãos, Lúcio fez inúmeras denúncias de irregularidades no uso das verbas de gabinete pelos parlamentares. Assim, a OPS, que começou como “Operação Pega Safado”, tornou-se “Operação Política Supervisionada” quando ganhou notoriedade na imprensa (ainda em 2013) até se tornar em 2018 um instituto.
O instituto veio para incentivar a fiscalização de gastos públicos nos estados e municípios por outros voluntários, e cresceu até atingir a marca de mais de 4 mil colaboradores e de quase 6 milhões de reais economizados dos cofres públicos. Como? Controle social. Coleta e análise de dados, identificação de irregularidades, denúncias às autoridades competentes, devolução do dinheiro pelos políticos aos seus respectivos órgãos. Outras iniciativas semelhantes, como a Operação Serenata de Amor, que usou Inteligência Artificial para fiscalizar os gastos dos deputados, combinadas com a disponibilização de dados abertos pela Câmara dos Deputados, tornaram regra o uso adequado das verbas de gabinete.
No âmbito municipal, há muitas iniciativas bacanas também. A Transparência Brasil, por exemplo, tem uma plataforma que reúne dados sobre as compras para merenda escolar em diversos municípios e permite a comparação entre os valores pagos em cada localidade. Veja, por exemplo, a análise dos valores pagos pela maçã argentina nos diferentes municípios do estado do Rio Grande do Sul. A mesma maçã foi contratada por um município por R$13,40 enquanto o preço médio no estado é R$7,50. Fácil de ver, sem tecnicismos ou reservas, todo mundo entende e pode monitorar a administração local. Adicionalmente, o programa pretende disponibilizar um aplicativo para que os próprios alunos possam mostrar o que estão recebendo nos refeitórios das escolas. Mais controle com mais participação.
Outro exemplo de sucesso é o Observatório Social do Brasil, uma rede nacional de associações criadas com o propósito de monitorar as compras públicas municipais, além de capacitar cidadãos, fortalecer o empreendedorismo local e desenvolver indicadores de gestão pública. Os poderes executivo e legislativo nos municípios. Utilizando de metodologia própria para subsidiar a solicitação de informações e a análise de dados das prefeituras e câmaras municipais, especialmente orçamentários, a rede já conta com unidades em 145 municípios no Brasil, sendo 8 em Minas Gerais.
Saindo da seara pública, gostaria de destacar também o quanto o controle social tem ganhado relevância na iniciativa privada. Quem se lembra do Guia Quatro Rodas, que anualmente trazia mapas de estradas e a avaliação de hotéis por todo o país? Era ótimo, usamos demais na minha infância e mesmo nos primeiros anos da vida adulta, porque sempre adorei viajar! Mas ele foi substituído, não? Quem ainda não conhece, deveria visitar o Trip Advisor, a Booking, Hoteis.com, Expedia ou tantos outros que vemos por aí. Esses serviços oferecem avaliações de hotéis, como o Guia Quatro Rodas fazia. Mas agora baseada na avaliação dos usuários, dos clientes de hotéis mundo afora. Controle social.
Outro exemplo fantástico na iniciativa privada é o portal Reclame Aqui. Um site que começou com a publicação de uma reclamação de seu criador na internet contra uma companhia aérea em 2001, tornou-se o principal canal de solução de reclamações de consumidores contra grandes empresas de varejo e prestação de serviços. Sabe o Procon? Ele está morrendo nas maiores cidades do país, vencido pela força coletiva da transparência dada às reclamações dos cidadãos e às soluções oferecidas (ou não) pelas empresas demandadas. Nos últimos 3 anos, mais de 26 milhões de casos foram resolvidos dentro da plataforma. Controle social.
Mas voltando à seara pública, deixo o convite para que todos se entendam como donos, todos se comprometam como donos e todos cobrem como donos. Da sua forma, no seu tempo.
Acesso a informação é requisito essencial para o controle e direito fundamental do cidadão, garantido pela constituição e regulamentado por normas como a Lei 12.527/2011 (Lei de Acesso a Informação). Primeiro passo então é garantir que os órgãos públicos municipais publiquem seus dados, inclusive os mais sensíveis, em formato claro e acessível a qualquer cidadão ou organização interessada.
Segundo, é importante nos capacitarmos e organizarmos para fazer bom uso desses dados. Não seria uma boa um Observatório Social do Brasil em Bom Despacho? Ou provocar o governo de Minas Gerais a abrir os dados da merenda escolar nos nossos municípios para a Transparência Brasil?
Lembro-me que lá pelos idos de 2010, eu precisei substituir o diretor de tecnologia da Câmara numa palestra para novos servidores da Casa. A palestra foi bem avaliada pelos colegas que estavam chegando na Câmara, e eu fui então, por alguns anos, o palestrante oficial do Centro de Informática para esses cursos de formação. Eu falava de modernidade e tecnologia, mas o que marcava mesmo era um recado que eu dava na segunda parte da palestra.
Eu começava com uma imagem de um jovem radiante, saltando extasiado em frente ao Congresso Nacional com um enorme “Bem-vindos!”. O slide seguinte tinha um enorme “Bem-vindos?”, com uma nada sutil alteração na pontuação da frase. No lugar do jovem vencedor, uma imagem de uma vaca super campeã de leite, com tetas enormes, e malhada com o desenho do Congresso Nacional no corpo.
Daí questionava meus novos colegas se estavam cientes de onde estavam chegando, do Brasil que havia lá fora ansioso por um poder público diferente, que servisse de verdade ao país e não a seus interesses próprios. Lembrava a todos que éramos parte de uma democracia jovem, de um país do futuro e do órgão máximo de um poder da República muito mal avaliado pelos cidadãos.
Falava então de projetos que desenvolvíamos dentro da Câmara para trabalhar contra esse quadro, de projetos que fazíamos em parceria com parlamentares honestos (sim, os há!), com organizações da sociedade civil e com cidadãos que procuravam a Câmara por diversos canais para expressar sua revolta, sua indignação e sua ansiedade para verem um país diferente algum dia.
Encerrava com um convite: “Vocês estão iniciando uma das carreiras mais almejadas do serviço público federal. Ok, vocês estão aqui por mérito, parabéns! Mas vocês estão iniciando uma história num dos órgãos centrais da nossa democracia, que tem poderes para perpetuar nossa pobreza como país, mas também para criar as condições para mudar essa realidade. Vocês estarão muito próximos desses poderes e terão sua contribuição para o que acontece aqui. Não se esqueçam que vocês também são cidadãos, honrem suas famílias aqui. Somos parte do problema e da solução.”
Esse convite vale para o servidor público, para quem trabalha na iniciativa privada, para o político, para o empresário e a empresária, estudantes, autônomos, para aqueles que se dedicam ao lar, para todos!
Vamos ser parte do país que queremos. Controle social é parte fundamental disso.