Covid-19: dourando a quarentena na chácara dos Cristais
Estou de quarentena por causa do Coronavírus. Afinal, faço parte do grupo de risco dessa pandemia. Sou diabético. Quarenta e sete anos de uso do cigarro deixaram meu pulmão comprometido. Entrei nos 77 anos de vida. Idade dos dois machadinhos. Idade perigosa que leva muita gente boa “pr’outra banda”, como dizia e temia meu pai.
Então, eu e a Geni estamos em retiro preventivo lá na Chácara dos Cristais. Um recanto aprazível onde há mais de 2 meses fizemos nossa morada. Monitorados pelos nossos filhos Tadeuzinho, o doutor, e Roberta, com a supervisão do Bruno lá de Porto Seguro. Por precaução não recebemos visitas. As idas à cidade estão praticamente vetadas. Padaria, lanchonetes, supermercados… eles é que cuidam de comprar o que precisamos e levam lá na nossa porta. Não devemos e não podemos entrar em estabelecimentos comerciais e semelhantes. Aglomerações. Gente sem máscaras. Fácil, fácil de pegar o Corona maldito.
Banco… Lugar perigoso… Os meninos é que vão lá, na maioria das vezes, realizar por nós as transações que precisamos fazer. Mordomia. Como somos velhinhos bem comportados, os filhos nos estão tratando a pão-de-ló.
Maneirando o isolamento
O contato com o mundo é com os três maravilhosos vizinhos que Deus nos deu lá na roça: no lado direito é a casa do Ricardo contador. Gente boa. Companheirão que caiu do céu. Do lado esquerdo, a Marisa do Dondinho, uma vizinha discreta, de poucos, mas preciosos contatos. Nos fundos a Landa do Alcedino, lar que conta sempre com a presença alegre e calorosa dos irmãos: Teo, Biga, Mônica, Selma,Joana, Volanda, Tate, Biga, Orlando… E de quando em vez a presença aglutinadora da velha e simpática mãe de todos, a centenária dona Eni.
Sou avesso a celular, mas a Geni, apesar do nosso recolhimento e afastamento social, me põe em contato com o mundo via Whatsapp e outras interações mais pelo milagre da Internet.
Passávamos horas e horas do dia e da noite entretendo-nos com leitura, com palavras cruzadas, caça palavras, sudoku, jogo dos sete erros, duplex, etc. A distrair-nos e a exercitar a memória.
Mas uma coisa mudou nosso roteiro. Nos tornou ativos. Combateu o ócio. Esses dois mestres aposentados, longe das salas de aula, onde militei por 60 anos ininterruptos e a Geni por mais de 40, descobrimos as delícias da jardinagem e do cultivo da terra.
Refúgio na Natureza
Vivemos agora, por força das circunstâncias, num latifúndio rural de 8 000 metros quadrados. Haja terreno a ser trabalhado. Plantas a serem cuidadas. Jardins a serem criados. Substituímos a caneta, o giz e os livros por enxada, facão, ancinho, carrinhos de mão. De companhia, os passarinhos: o delicado beija-flor, sabiá, sanhaços, pequenas e lindas saíras azuis ou verdes, uma orquestra com a voz dos mais belos cantos da ornitologia, os sofrês cor preto-laranja, a fogo-apagou, a saracura e a seriema, o majestoso “alma-de-gato” com sua longa cauda, joão-de-barro, gralhas, tiziu, tico-tico, papa-capim, tucanos, maritacas… Ah! Os canários da terra, um bando de 80, 100 ou mais, rajados ou amarelinhos, comendo fubá na porta da cozinha da casa.
As árvores
As árvores… Ah! As árvores, sou apaixonado por elas. Um menino do mato. Um admirador de suas dezenas de tons verdes das folhas e do arco-íris das flores. Um filósofo a tentar desvendar a sua mudez diante dos homens e do universo. Quem sabe uma hora elas falam comigo!
Árvores de cerrado, tenho lá cerca de 400 pés: umas gigantes, como o ingá o pau d’óleo, o elegante gonçalo-alves. A maria-pobre, cedro, jacarandá, eucaliptos, ingás octogenários, peroba, mogno africano.
E no futuro a maior de todas elas. Plantei há dias uma mudinha de açacu. Aquelas gigantes da Praça da Estação. Presente do Zé Rafael, filho do Sô Geraldo. Menino humilde da Praça São José nos anos 50, que se tornou mecânico de máquinas pesadas e que com a Andrade Gutierrez rodou o Brasil e o mundo: Europa, Ásia e África. Zé Rafael hoje vive em Bom Despacho. Ele que aprendeu o segredo das máquinas, tornou-se especialista também em fazer e preservar amigos pelo mundo inteiro.
Outras, meninas, mocinhas ou adultas com a força de seus pequenos troncos e o verdor de suas folhagens balançadas pelos ventos travessos que riscam os céus: pequenas aroeiras, palmeiras, coités, ipês roxos, amarelos e brancos, paineiras, urucum, pau terra.
Há ainda as árvores frutíferas do cerrado: araticum, jatobá, baco-pari, cagaita, algodão-doce, pequi… O cerrado dá tantos e tão saborosos frutos que o velho Zé Aleixo, que vivia na fazenda de meu avô, dizia que a gente pode ficar 3 dias perdido nessa mata que não passa fome. Tanto fruto tem pra comer.
Orgulha-nos também uma pequena horta, mas que enriquece nossos jantares.
Possuímos mais de 30 pés de frutas domésticas no quintal: lichia, abacate, jabuticaba, jambo, laranja, lima e limão. Goiaba de miolo branco, vermelho, roxo e amarelo. Acerola. Açaí. Manga. Banana. Mamão.
Embora isolado, por necessidade, da comunidade humana não me queixo, estou muito bem acompanhado por minha caríssima companheira, pelas avezitas do céu e por um belo rebanho de seres vegetais, que muitas vezes parecem me escutar ou conversarem comigo.
O jardim é um tesouro
Uma das mais altas autoridades do Brasil, desafiando os cientistas e médicos do mundo inteiro garantiu que o Covid-19 é uma gripinha de merda e que ninguém precisa ficar socado dentro de casa de medo dela, não. Embora todos respeitem muito essa autoridade pela sua reconhecida sabedoria e conhecimentos, preferi não arriscar, não. Tô com medo, tô de quarentena sim e não nego. Além do mais estou bem feliz. A Geni e eu passamos manhãs muito satisfeitos agora plantando um jardim tropical na entrada do sítio nos Cristais. Como disse uma mulher sábia entre as sábias, creio que Helena Antipoff: “ Quem tem um jardim, tem um tesouro.”
Grande descoberta. Deus escreveu certo por linhas tortas. Fez-nos achar um agradável modo de vida no meio da pandemia. E uma quarentena monitorada para salvar nossas vidas.